O que faz um consultor de histórias? Encontra o Homero ou o Tolkien dentro de nós

O argumentista James Bonnet dá este domingo uma masterclass em Cascais sobre storymaking. “Os contos de fadas, O Discurso do Rei, O Sexto Sentido, O Feitiço do Tempo, Harry Potter, O Senhor dos Anéis – têm a mesma estrutura”.

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Este domingo, em Cascais, James Bonnet vai ensinar como roubar fogo aos deuses. Ou, melhor, como escrever melhores histórias. Um guru dos guiões, um consultor de histórias, o norte-americano foi convidado pelo A Quatro Mãos – Encontro de Escrita para Cinema e Televisão em Português, para um dia inteiro de masterclass em Cascais. Antes de voar para Portugal, lamentou a ignorância de Hollywood sobre as boas histórias e prometeu, poeticamente: “Temos o autor da Ilíada e da Odisseia, dessas grandes histórias dentro de nós, à espera de ser contactado e convocado como parceiro de escrita”.

James Bonnet passou “mais de 40 anos a tentar perceber o que é uma história, e a atitude dos principais profissionais na indústria quanto a ela”, explica ao PÚBLICO ao telefone, a partir de França. Começou como actor, na Broadway aos 17 anos, e o seu primeiro filme foi o terror absurdo de The Blob (o original de 1958), com Steve McQueen. Dá aulas e aconselha clientes, que lhe chegam sobretudo através da leitura do seu manual, Stealing Fire from the Gods: The Complete Guide to Story For Writers And Filmmakers (1999). Ensina "storymaking", a criação de novas histórias, e não "storytelling", o recontar de histórias que já existem.

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Como Robert McKee ou Syd Field, Bonnet é um daqueles nomes de bastidores que ajuda a criar histórias, estruturas, tramas invisíveis para organizar as ideias de escritores, guionistas ou realizadores. Acredita em histórias de apelo universal e uma das suas ideias mais apelativas é a de que “há uma parte do nosso inconsciente que está ávida por nos ajudar a resolver enigmas artísticos e criativos – chamo-lhe o Inconsciente Criativo”, explica.

“Essa fonte da criatividade, uma fonte misteriosa dentro de nós, cria os grandes mitos, as lendas e as grandes histórias” como a do Rei Artur. “É possível estabelecer contacto com essa fonte e dar vida a esses padrões nas nossas histórias, o que lhes acrescenta um poder tremendo”, defende Bonnet. “Podemos perguntar-lhe coisas directamente, e dará respostas de ‘sim’ e ‘não’ sobre a estrutura, sobre a natureza das personagens", garante. O Inconsciente Criativo pode "ser um colaborador" e permite "dizer adeus ao bloqueio do escritor” – “meu deus, é fantástico”, ri-se.

Bonnet ensina um “modelo de história sofisticado, o paradigma dourado, construído a partir de todos os padrões encontrados nas grandes histórias”. No fundo, “os contos de fadas dos últimos 50, 100 anos, e os êxitos de bilheteira e as histórias aclamadas pela crítica – O Discurso do Rei, O Sexto Sentido, O Feitiço do Tempo, Harry Potter, O Senhor dos Anéis, todos têm a mesma estrutura em comum”. Fala da importância da Poética, de Aristóteles, ou do incontornável The Hero with a Thousand Faces, de Joseph Campbell, sobre a jornada do herói que tantas obras inspirou e estruturou e também muito marcado pelas teorias do psicanalista Carl Jung sobre os mitos.

O mapa da mina parece simples, mas James Bonnet lamenta como uma das maiores indústrias do mundo, a sua, a americana, está divorciada disso. “As grandes histórias que viveram milhares de anos, a Ilíada, a Odisseia, têm estruturas escondidas e padrões que estabelecem uma ligação psicológica muito importante, o que lhes dá grande poder e impacto”, reitera. Mas “temos toda uma indústria que basicamente está a fazer algo, as histórias, que não compreende” – e, por isso, “se fizerem cinco filmes muito bons é um ano extraordinário”. Para James Bonnet, Hollywood sabe fazer acção, conflito e violência – fruto da tradição oral e clássicos como Robin Hood –, e algumas histórias de amor. “Mas é bastante fraco em todas as outras emoções humanas."

Começou no palco e passou pela televisão, onde escreveu e actuou – foi distinguido pela Guilda dos Argumentistas, de cuja direcção fez parte pela sua escrita na série Barney Miller; escreveu para Kojac ou Tarzan, mas é sobretudo nos bastidores que trabalha. Hoje tem 79 anos.

Que impacto teve a multiplicidade de plataformas de hoje na forma como contamos histórias? Ou nas histórias que contamos? James Bonnet vê “mais liberdade criativa” nos canais premium e no streaming, e não vê uma luta entre o pequeno ecrã e o cinema. Recorda que “há 30, 40 anos, quando o cabo chegou, previam-se centenas de oportunidades; só tivemos dez oportunidades. Demorou este tempo todo para se realizar” esse sonho. Mas que para o consultor de histórias, o sonho continua por cumprir em pleno, lamenta. “Estão a ter o mesmo problema que as produtoras de cinema, a falta de compreensão sobre o que torna uma história maravilhosa.”

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