Trump reafirma a opção nacionalista e ameaça arrasar a Coreia do Norte

É um discurso que não ficará na História e cuja originalidade reside numa ameaça apocalíptica que nenhum Presidente americano até agora fizera. No conjunto, reflecte uma visão de mundo nacionalista em que todos lutam contra todos.

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O Presidente dos EUA reafirmou a via do unilateralismo no seu primeiro discurso nas Nações Unidas REUTERS/Eduardo Munoz

Discursando pela primeira vez na Assembleia Geral da ONU, perante os líderes mundiais e uma audiência de milhões de pessoas, o Presidente Donald Trump admitiu, de forma inédita, destruir a Coreia do Norte se ela ameaçar os Estados Unidos ou os seus aliados. Foi a parte mais sonora do discurso e que imediatamente ocupou as manchetes das edições online da imprensa mundial. Mas não a mais relevante. Esta diz respeito à reafirmação da palavra de ordem “America First”, a primazia dos interesses nacionais americanos, convidando os ouros países a seguirem o exemplo.

Trump traçou o quadro de um mundo partido entre o bem e o mal: por um lado, há “grandes avanços na ciência, na tecnologia e na medicina, que estão a curar doenças e a resolver problemas que as velhas gerações julgavam ser impossível de resolver”; por outro lado, “terroristas e extremistas uniram forças e espalharam-se por todas as regiões do planeta, com o apoio de “regimes desonestos presentes nesta sala, que não só apoiam o terrorismo como também ameaçam outras nações e os seus próprios povos com as mais destrutivas armas que a humanidade conhece”.

Para salvar o mundo de um futuro marcado pela violência e pela guerra, a visão de Trump não passa pela política que tem sido seguida pelos Estados Unidos nas últimas décadas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial — não disse que os Estados Unidos querem ver mais democracias no mundo; apenas disse que todos devem promover a prosperidade dos seus povos e a paz fora de portas, numa defesa da ideia de nações soberanas e fortes.

Na América, prosseguiu Trump, “não queremos impor o nosso modo de vida a ninguém, preferimos brilhar como um exemplo para que todos possam ver”. Também “o sucesso da ONU depende da força independente dos seus membros”.

O Rocket Man

E o que é que está a impedir o caminho em direcção a um mundo de paz e prosperidade? Em poucas palavras, a Coreia do Norte e o Irão; em mais palavras, a Coreia do Norte, o Irão, a Venezuela, o socialismo e a “burocracia” das Nações Unidas.

O Presidente começou por ameaçar Kim Jong-un e o regime norte-coreano: “Ninguém tem mostrado mais desprezo pelas outras nações e pelo bem-estar do seu próprio povo do que o regime depravado da Coreia do Norte” e “nenhuma nação da Terra tem interesse em ver este bando de criminosos armar-se com armas nucleares e mísseis”.

E se a Coreia do Norte não perceber que “a desnuclearização é o seu único futuro aceitável”, então os Estados Unidos vão agir: “Não teremos outra alternativa que não seja destruir totalmente a Coreia do Norte. O Rocket Man [Kim Jong-un] está numa missão suicida para o seu próprio regime.”

Irão

Depois de pedir aos países-membros da ONU que isolem a Coreia do Norte, o Presidente dos Estados Unidos virou-se para o Irão. Denunciou o acordo sobre o programa nuclear iraniano, alcançado durante a era de Barack Obama, como “uma vergonha para os Estados Unidos”. Colocou em cima da mesa uma série de exigências americanas: “Chegou a hora de o regime [iraniano] libertar todos os americanos e cidadãos de outros países que foram detidos injustamente. Acima de tudo, o Irão tem de deixar de apoiar terroristas, começar a servir o seu povo e a respeitar os direitos de soberania dos seus vizinhos”, disse Trump, enquanto o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ia dizendo que sim com a cabeça. Lançou, por fim, um apelo aos iranianos para que se revoltem contra o regime: “Os regimes opressivos não podem durar para sempre, e chegará o dia em que o povo terá de enfrentar uma escolha.”

Mas o momento mais peculiar do discurso ficou reservado para a parte em que o Presidente norte-americano falou sobre a Venezuela. Pelo meio das acusações de opressão e de “roubo da soberania do povo” lançadas contra o Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, Trump proferiu uma frase que poderia ficar na História dos discursos nas Nações Unidas: “O problema na Venezuela não é o facto de o socialismo ter sido implementado de forma errada; o problema é o socialismo ter sido implementado de forma fiel.”

A tecla patriótica

As últimas palavras foram todas reservadas para um apelo global ao resgate de um sentimento patriótico — quase como se Trump estivesse num comício de campanha, mas com mais requinte na escolha das palavras: “É esse o desejo ancestral de cada povo, o desejo mais profundo de cada alma sagrada. Deixemos, então, que seja esta a nossa missão, e que seja esta a nossa mensagem para o mundo. Vamos lutar em conjunto, vamos sacrificar-nos em conjunto, e vamos defender em conjunto a paz, a liberdade, a justiça, a família, a humanidade e o todo-poderoso Deus que nos criou a todos”, disse o Presidente norte-americano perante os líderes dos países-membros da ONU, terminando como se estivesse no Congresso norte-americano: “Obrigado, Deus vos abençoe, Deus abençoe as nações do mundo e Deus abençoe os Estados Unidos da América.”

Breve balanço

O discurso não foi original mas será lido em várias regiões do mundo como “incendiário”. Há uma razão: “É a primeira vez que o Presidente dos Estados Unidos ameaça riscar do mapa um país de 25 milhões de habitantes”, anotou no Washington Post o analista Aaron Blake.

Não se tratou de mais um tweet mas de um texto longamente elaborado. A ameaça pode encobrir a falta de “boas opções” para Trump. Ou, por outro lado, dar uma garantia a aliados como o Japão ou a Coreia do Sul. Resta saber se estes apreciarão este tipo de ameaça, em tom apocalíptico.

Quanto à ruptura do acordo com Irão, o Presidente francês, Emmanuel Macron, qualificou-a de “irresponsável”. Na véspera dissera que tal significaria “abrir uma caixa de Pandora”.

A visão do mundo de Trump foi há dias resumida pelo seu conselheiro de Segurança Nacional, H.R McMaster: o planeta não é uma “comunidade global” mas uma arena em que existem nações, actores não-governamentais e negócios, todos em competição por vantagens”. É um fórum em que impera “a força militar, política, económica e moral”.

Nenhum dos antecessores de Trump teve uma visão idílica da comunidade internacional e nenhum desleixou os interesses americanos, mesmo quando Obama reconheceu o fim da América enquanto “potência solitária”. Aquilo com que Trump rompe é com a tentativa de criar as bases de uma “ordem internacional” baseada não apenas na potência americana mas em pilares como as alianças e os tratados.

Este discurso “não ficará na História, será esquecido como tantos outros feitos na ONU”, sentenciou no La Repubblica o jornalista Vittorio Zucconi.

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