Harry Dean Stanton (1926- 2017) Um longo adeus pela porta grande

Lucky, o último filme de Harry Dean Stanton, e um papel principal tinham qualquer coisa de testamento.

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Talvez houvesse razões para desconfiar: em Agosto último, Harry Dean Stanton não fez a viagem a Locarno para apresentar Lucky, o filme que de algum modo fica como o seu “testamento cinematográfico”, aclamado desde a sua estreia em South by Southwest como a “performance de uma vida”. Tanto mais que o filme se alimenta, literalmente, da própria vida do actor – o filme foi escrito para ele por Logan Sparks e Drago Sumonja, amigos de longa data (Sparks, que fazia parte da comitiva, disse em conferência de imprensa conhecer o actor há mais de 20 anos), e a partir de coisas que o próprio Stanton ia dizendo em conversas e no dia-a-dia.

Talvez houvesse, dizíamos, razões para desconfiar: antes de Lucky, que se estreou em Março último no festival americano South by Southwest, Stanton tinha praticamente parado de rodar. A sua participação no regresso de Twin Peaks, em pós-produção quando Lucky foi rodado, foi o seu único papel “de peso” até esta história de um nonagenário do Arizona a confrontar-se com a morte que se aproxima — um papel principal que implica a presença constante do actor no ecrã, ao longo de hora e meia. E o elenco de veteranos secundários que se juntou para o filme, que inclui Tom Skerritt, Ed Begley Jr. Beth Grant, Barry Shabaka Henley, Ron Livingston, James Darren e David Lynch (sim, esse mesmo, o realizador de Twin Peaks e Veludo Azul), aceitou papéis ínfimos só pela possibilidade de trabalhar com ele, nem que fosse só por um dia.

Numa entrevista num café de Locarno, o realizador John Carroll Lynch, ele próprio actor secundário em tempo de estreia na realização, disse que toda a rodagem teve de levar em conta a idade avançada do actor: “Muitas das decisões que tomámos em termos de produção dependeram do Harry.” Produção independente de baixo orçamento, Lucky foi rodado em pouco tempo e com pouco dinheiro. “Tínhamos 19 dias úteis, mas espalhámo-los ao longo de seis semanas — dois, três, quatro dias de cada vez. Queríamos garantir que o Harry tinha pausas para se recompor. Rodámos na Califórnia para ele poder voltar para casa todas as noites e dormir na sua própria cama, e assegurar que ele não estava no plateau mais de dez horas por dia, 12 no máximo. Mas o verdadeiro desafio de Lucky não teve tanto que ver com a idade do Harry como com a sua relação com o assuntol”, sublinha o realizador. “É um filme incrivelmente pessoal para ele: o guião foi tecido a partir da sua vida. E a sua disponibilidade para aceitar isso, a sua coragem de se revelar frente à câmara, foi espantosa. Logo ao princípio vemo-lo em roupa interior, e creio que nunca vimos o corpo dele assim no cinema — e adoro a contradição aparente entre a fragilidade do seu estado físico e a vitalidade invencível da sua mente.”

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Talvez houvesse, portanto, razões para desconfiar: Lucky (cuja distribuição em Portugal já estava garantida antes de Locarno pela Alambique, mas aguarda ainda data de estreia), tinha qualquer coisa de “testamento cinematográfico”, mesmo que ninguém o diga abertamente. Numa das cenas mais memoráveis, Stanton vai ao médico depois de ter desmaiado em casa, e o médico diz-lhe que tem uma saúde de ferro, apesar de fumar que nem uma chaminé e de ter enterrado meia cidade. “O teu problema é que estás velho. E só vais ficar mais velho.” E sim, aos 90 anos ele continuava a fumar — no filme e na vida real. “Não sei se o Harry ainda está vivo por ainda fumar,” dizia John Carroll Lynch entre risos em Locarno. “Acho que provavelmente se tivesse de parar de fumar, era capaz de dizer: 'Muito bem, para mim já chega. É aqui que saio.'"

Por acaso, numa das últimas cenas de Lucky, o actor está enquadrado por uma porta com o sinal exit por cima. Talvez houvesse razões para desconfiar que este ia ser o longo adeus de Harry Dean Stanton ao cinema. Pela porta grande. 

Notícia corrigida às 11h57 de 17 de Setembro

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