A bitola na rede ferroviária portuguesa já não é um problema

Portugal e Espanha têm uma bitola (distância entre carris) diferente do resto da Europa. Há quem defenda uma mudança rápida que custaria milhares de milhões de euros, mas Infraestruturas de Portugal diz que não há pressa.

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O futuro da bitola ferroviária tem marcado o debate no sector Nelson Garrido

São 23 centímetros de diferença entre os carris que fazem da Península Ibérica uma “ilha ferroviária” em relação ao resto da Europa. Em Portugal e Espanha os comboios circulam em linhas cujos carris distam 1668 milímetros (bitola ibérica) enquanto na maioria dos países europeus o fazem em carris separados por 1435 milímetros (bitola europeia).

Contrariamente à lenda que remete para os nacionalismos do séc. XIX e conta que a Espanha optou por uma bitola diferente (o que obrigou Portugal a mudar o que já tinha construído para não ficar isolado) para dificultar eventuais invasões franceses, a verdade é mais prosaica: os engenheiros espanhóis acreditavam que locomotivas a vapor com fornalhas mais largas teriam mais potência para vencer as rampas das montanhas, o que implicou alargar a distância entre carris. Uma teoria que se provou ser irrelevante, mas entretanto a rede ferroviária ibérica já estava bem avançada.

Mais de cem anos depois, aquando da Expo 92, o país vizinho inaugura uma linha de alta velocidade entre Madrid e Sevilha com bitola ...europeia. Uma opção ditada pela pressa em construí-la a tempo da inauguração da Exposição Mundial. Como não havia tempo para projectar e testar um comboio de alta velocidade numa linha de bitola ibérica, importou-se de França um projecto praticamente igual ao TGV.

Este acaso da História foi determinante para que a alta velocidade espanhola se desenvolvesse em bitola europeia.

E é aqui que chegamos ao séc. XXI e a um manifesto apresentado em Julho passado por um grupo de personalidades que apelaram ao Governo e ao Presidente da República para um grande desígnio nacional que seria a migração da bitola ibérica para europeia por forma a que Portugal não ficasse isolado do resto do continente.

Na quinta-feira, no congresso da ADFERSIT (Associação Portuguesa para o Desenvolvimento dos Sistemas Integrados de Transporte), o vice-presidente da Infraestruturas de Portugal, Carlos Fernandes, explicou que essa mudança será feita no tempo devido e em perfeita articulação com a rede espanhola porque não faria sentido mudar já a bitola até à fronteira enquanto nuestro hermanos continuarem com a bitola ibérica.

“A própria Comissão Europeia não quer ilhas ferroviárias dentro de cada país pois se um estado membro migrar a bitola demasiado cedo, fica uma ilha”, disse.

Em Portugal, só 0,3% dos comboios de passageiros e 6% dos comboios de mercadorias são internacionais, o que dá bem a ideia da não urgência desta migração que, a concretizar-se num curto prazo, custaria milhares de milhões de euros ao país.  Além de que isso implicaria que todos os comboios portugueses tivessem de ser adaptados à bitola europeia.

“Era simples dizer aos operadores ‘deitem os comboios fora e comprem outros’ porque queremos chegar à fronteira de Espanha e ter a bitola certa”, ironizou Carlos Fernandes. Para logo falar a sério: “este assunto está a ser tratado entre Portugal e Espanha há anos e faremos a migração da bitola quando for racionalmente eficiente fazer essa migração”. Por isso, todos os investimentos de modernização das infra-estruturas ferroviárias contemplam já travessas especiais que permitem, quando chegar o momento, mudar de bitola através de uma operação relativamente simples.

Essa migração será feita a pensar sobretudo no tráfego de mercadorias, porque para os passageiros há décadas que já existem soluções técnicas que fazem da diferença de bitola um problema residual ou mesmo um falso problema. Os comboios de eixos telescópicos (também designados bi-bitola) adaptam os seus rodados à distância entre carris e circulam indistintamente em bitola ibérica ou europeia. Há até comboios de alta velocidade que circulam nos dois tipos de linhas.

Mas mesmo os vagões de mercadorias também já mereceram o interesse da indústria ferroviária que está a investigar uma forma barata de construir estes veículos com eixos telescópicos para que também os comboios de carga possam mudar facilmente de uma bitola para outra.

Actualmente essa adaptação aos dois tipos de linha é feita nas fronteiras através de uma operação que consiste em mudar os bogies (rodados) aos vagões. Isso é feito diariamente a comboios de mercadorias que circulam entre Espanha e França, entre a Suécia e a Finlândia e entre a Polónia e a Rússia.  

Outro exemplo: entre 2012 e 2015 circulou entre Portugal e Alemanha um comboio de mercadorias que fazia a viagem em apenas 72 horas e foi um sucesso comercial, apesar de uma paragem de oito horas na fronteira hispano-francesa para adaptar a composição à bitola europeia. O que "matou" o serviço não foi a bitola, mas sim a falta de capacidade da rede francesa que não conseguiu assegurar canal horário para a sua passagem.

De resto, recordou Carlos Fernandes, a interoperabilidade ferroviária não se esgota na bitola. Para fazer um mercado único ferroviário e permitir que comboios de todos os estados membros circulem em todas as redes tal como hoje os camiões podem circular em todas as estradas, há muito a fazer na sinalização, no comando da circulação, no material circulante, na tensão eléctrica e no controlo de velocidade. Só deste último há na Europa 20 sistemas de controlo de velocidade dos comboios, o que obrigaria uma locomotiva cem por cento interoperável a ter a bordo esses 20 equipamentos. 

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