As fábulas da realidade: três curtas portuguesas

Três curtas-metragens portuguesas, com passagens marcantes em festivais internacionais, que atestam, através dos universos pessoais dos seus autores, a vitalidade e a diversidade da cinematografia portuguesa.

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Farpões, Baldios é o filme de estreia de Marta Mateus

Estreia conjunta de três curtas-metragens portuguesas que muito recentemente, já neste ano de 2017, se fizeram notar pela sua passagem por alguns dos mais importantes festivais de cinema internacionais: Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante, trouxe um Urso de Ouro de Berlim, e os filmes de Carlos Conceição e Marta Mateus integraram a selecção oficial da última edição do Festival de Cannes (Coelho Mau, na Semana da Crítica, Farpões, Baldios, na Quinzena dos Realizadores), onde colheram, sobretudo o segundo, amplos elogios da crítica.

São três filmes bastante diferentes, expressões dos universos pessoais dos seus autores, e se o seu visionamento em conjunto e em sequência até salienta a existência de alguns curiosos pontos de contacto (a ruralidade, um onirismo de diversas colorações e matizes, a preponderância de figuras femininas e maternais), a ocasião será menos de ressalvar essas continuidades essencialmente circunstanciais e fruto da sua programação conjunta, e mais de reiterar esse facto, que continua a surpreender até o mais rodado — a vitalidade e a diversidade de uma cinematografia como a portuguesa, sempre periclitante mas sempre capaz de deitar cá para fora realizadores convictos do que estão a fazer e objectos que, gostando-se mais ou menos especificamente de cada um, são tudo menos “neutros”. Estes três filmes conferem-no.

Cidade Pequena é a história de um “belo adormecido”, a criança que começamos por ver deitada a toda a extensão horizontal do enquadramento e que voltaremos a ver inúmeras vezes, quase sempre de olhos fechados. Como, por exemplo, no mais notável plano do filme de Costa Amarante, espécie de bailado feito de uma harmonia entre humanos e a natureza, com a ajuda da arte do enquadramento que o cinema também é (e que o realizador domina muito bem): um interior dum carro, um espelho retrovisor (no qual se reflecte o rosto adormecido da criança, no banco de trás), à frente uma árvore, vegetação, uma vaca, uma mulher, e dois GNR que dançam ao som duma canção, Words (F.R. David), do princípio dos anos 80.

Será a recomposição onírica e obliquamente memorialista (o texto da voz off, ou certos fragmentos) da infância numa “cidade pequena” e noutro tempo, um interior português que o cinema tem tendência a descobrir como um caleidoscópio feérico (veremos também carrocéis de feira e foguetes a rebentarem contra um céu nocturno) e um reservatório inesgotável de uma natureza vitalista (os muitos planos com animais e animaizinhos), antes de tudo aparentemente voltar, embora sempre sob o signo do son(h)o, à “cidade grande”, na forma do edifício moderno que vem ocupar os últimos instantes do filme. Mas a presença da natureza, de resto, vem reforçar a dimensão sensual de Cidade Pequena, sobretudo pela sua finta a um “impressionismo” muito partie de campagne que nalguns momentos (aqueles planos com as janelas a criarem enquadramentos dentro do enquadramento) parece mesmo uma vénia a Renoir.

Em Coelho Mau, que é porventura o melhor filme de Carlos Conceição, mergulha-se ainda mais num clima onírico, ou pelo menos numa ordem de realidade sempre vacilante, algures entre uns pozinhos de Lynch e alguma contiguidade com o universo do realizador português que parece mais próximo do cinema de Conceição, João Pedro Rodrigues (aliás, João Rui Guerra da Mata, habitual colaborador de João Pedro, é creditado como responsável pela direcção artística).

É um mundo nocturno, de conto de fadas para adultos mas de onde ainda não se excluiu a possibilidade de uma forma de “inocência”, com sexo e máscaras sadomaso, amor, vingança e doença (mais máscaras: a ajuda respiratória da miúda protagonista), florestas e casas na árvores, um bestiário insólito (outra máscara: a do “rapaz-coelho”) que se dispõe a ser cruzado, como em tantos contos de fadas, por um par de irmãos. Sonhos e fábulas, portanto, onde o veneno e a doçura, o latex negro e o “veludo azul”, se tratam por tu, e tudo se encena como uma sucessão de rituais de significados obscuros que incluem — teatralmente ou cinematograficamente — o musical e a canção.

Finalmente, Farpões, Baldios, filme de estreia da sua realizadora. É o Alentejo, sim, reconhecível e palpável naquelas paisagens, naqueles casebres e instrumentos de trabalho há muito abandonados, naqueles rostos queimados dos homens e das mulheres de mais idade, na luz dourada e esmagadora (para mais, “puxada” e quase desnaturalizada pelo trabalho da imagem digital) com o que o sol alentejano parece fazer “arder” tudo aquilo em que se reflecte. Mas, narrativamente — se não se negar que há uma “narrativa” em Farpões, Baldios — também há um certa presença onírica, ou pelo menos duma ordem de realidade dúbia, a revindicar para a poesia do filme a vizinhança de um “fantástico”, esparso mas não menos misterioso por isso.

A relação entre os miúdos, como que “espectadores”, e todos aqueles velhos trabalhadores do campo que são como fantasmas presos nos seus castelos há muito obsoletos, traz essa carga “romanesca” (à la Tourneur ou à la Carpenter: “eles são iguais a nós, mas são diferentes”, diz um dos garotos, como se confrontado com criaturas míticas) a enformar o que é, essencialmente, o retrato duma realidade social (e política) “deixada para trás” mas cujos vestígios, materiais e humanos, persistem mais ou menos espectralmente, e são a essência do filme.

Na atenção aos rostos, cavados e marcados, na fricção entre o texto e a dicção, imperfeita e desafectada, e no modo como tudo isto se assume como expressão de um testemunho vindo do fundo da terra e do fundo do tempo, há uma égide óbvia para Farpões, Baldios: aqueles últimos Straub/Huillet, sobretudo os filmes “italianos”, baseados em Vittorini ou em Pavese e votados a “operários e camponeses” e a modos de vida rasurados pela “modernidade”. Mas se duma filiação se trata, o filme de Marta Mateus enverga-a com nobreza, desenvoltura e uma originalidade bastante promissora.

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