O veto de Marcelo

Marcelo está a assumir com qual dos lados da luta eleitoral autárquica se identifica o seu pensamento

Antes de partir para férias, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, exerceu pela quinta vez, desde que tomou posse há ano e meio, o seu poder constitucional de veto. Fê-lo em relação ao diploma do Parlamento que finaliza a transferência para a Câmara Municipal de Lisboa da Carris, proibindo que esta empresa possa ser privatizada no futuro. É precisamente esta blindagem de privatização a origem do veto, como defende o Presidente, já que, na sua opinião, "vedar, taxativamente, tal concessão" é uma "politicamente excessiva intervenção da Assembleia da República num espaço de decisão concreta da administração pública — em particular do poder local, condicionando, de forma drástica, a futura opção da própria autarquia local".

É perfeitamente legítimo, do ponto de vista constitucional e político, a decisão do Presidente de vetar a lei da Assembleia sobre a Carris, assim como qualquer outra com origem no hemiciclo de São Bento ou no Governo. Marcelo pode fazê-lo, ainda que no caso de diplomas com origem parlamentar os deputados possam voltar a aprovar a mesma lei, sem lhe mudar uma vírgula, e o Presidente terá de a promulgar. Acresce a isto o facto de o actual Presidente ser aquele que, desde a revisão constitucional de 1982, menos tem usado o seu poder de veto. Mário Soares entre 1986 e 1996 devolveu ao Parlamento ou ao Governo 37 diplomas e Jorge Sampaio entre 1996 e 2006 vetou 75 e Cavaco Silva fê-lo 25 vezes entre 2006 e 2016.

Do ponto de vista político este veto serve simbolicamente para demarcar uma linha de fronteira entre estes dois órgãos de soberania. E serve não só porque um veto presidencial é sempre uma demarcação política em relação aos conteúdos do diploma em causa, os quais, como é evidente, têm um significado político e uma origem na maioria parlamentar que o aprova, mas porque, neste caso, é pública a convicção do Governo e pelo menos do PCP — autor do projecto de lei na sua origem — da necessidade de a Carris ficar no universo tutelar da Câmara de Lisboa. A ideia foi defendida pelo actual primeiro-ministro, António Costa, com unhas e dentes quando presidia ao município de Lisboa e é-o também pelo seu sucessor, Fernando Medina.

O simbolismo deste veto é maior precisamente pelos contornos de delimitação do que deve ser o poder autárquico de uma câmara com o perfil da capital, mas também pelo momento político em que Marcelo veta a blindagem da privatização futura da Carris. Decorre já a pré-campanha eleitoral autárquica e, em Lisboa, os protagonistas das duas principais candidaturas têm entre as suas prioridades o dossier da mobilidade urbana e neste o papel central dos transportes públicos. É assim com o candidato da coligação liderada pelo PS, o actual presidente da câmara, Fernando Medina. É-o igualmente com a candidata Teresa Leal Coelho, cabeça de lista do PSD em Lisboa, que já apresentou como prioridade a concessão da Carris.

Ora, quando Marcelo, num momento político pré-eleitoral autárquico, decide vetar um diploma — acto, repetimos, perfeitamente legítimo política e constitucionalmente —, alegando como razão a necessidade de não ficar blindada na lei a possibilidade de a Câmara de Lisboa poder decidir no futuro pela concessão ou pela privatização da Carris, está a assumir preto no branco com qual dos lados da luta eleitoral autárquica se identifica o seu pensamento sobre o futuro dos transportes públicos na capital. E, ao usar um argumento que além de próprio vai ao encontro de uma proposta da candidata do PSD, Marcelo está, por maioria de razão, a demarcar-se do Governo.

 

Nota — O deputado do PS Luís Soares é candidato a presidente da Junta de Freguesia de Caldelas, conhecida por Caldas das Taipas, em Guimarães, e não à freguesia com o mesmo nome em Amares, como erradamente escrevi na semana passada. O erro na localização da freguesia não invalida em nada o que defendi sobre a permissividade em que pode ser desempenhado o poder autárquico no caso das juntas de freguesia.

 

São José Almeida regressa a este espaço de opinião a 23 de Setembro.

 

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