Ao acaso, um cão salsicha

Todd Solondz continua fiel aos propósitos da sua obra: retrato das misérias culturais, sociais e emocionais americanas: Wiener Dog.

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Um “salsicha” como testemunha silenciosa das vidas horríveis dos humanos

Meio desaparecido da vista, em parte por culpa própria (nunca mais fez um Happiness), Todd Solondz continua fiel aos propósitos essenciais da sua obra, que passam quase sempre por um retrato das misérias americanas, misérias culturais, sociais e emocionais, que não poucas vezes integra, como se fosse um primo de John Waters, por uma apropriação feroz do kitsch e do mau gosto, como um espelho posto em frente do espectador (o que é provavelmente uma razão da progressiva “neutralização” do seu cinema: o espectador que ele afronta não é o espectador que, em princípio, vai ver os seus filmes). O seu filme anterior, Dark Horse, não passava muito dessa variação watersiana sobre o total descalabro do american way of life quando observado nos subúrbios alimentados a fast food, centros comerciais e televisão.

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Wiener Dog é um pouco melhor: o estratagema narrativo (se calhar colhido no burro Baltazar de Bresson) centra-se num cão, da raça a que em português chamamos “salsicha”, que vai passando de dono em dono ao longo de quatro histórias, como testemunha silenciosa e acabrunhada das vidas mais ou menos horríveis dos humanos que temporariamente acompanha. Mas só a primeira história (que é a melhor) tem o cão como protagonista, e aliás é uma pequena pérola de humor negro: os pais (Tracy Letts e Julie Delpy) oferecem um cão ao filho, e em vez de uma experiência confortável e felpuda (à la Disney) sucede o oposto, tornando-se, para o garoto, numa introdução aos horrores da existência, da diarreia (o animal tem, aparentemente, um aparelho gástrico-intestinal frágil) à cremação, passando por várias outras coisas muito desagradáveis, normalmente explicadas com duvidoso sentido pedagógico pela mãe.

Depois dessa introdução quase brilhante na maneira como deixa os clichés esborrachados no chão da sala a esguichar sangue e porcaria (não é só “imagem”, aliás é até um prenúncio como perceberá quem vir o filme), Wiener Dog esmorece e o que vem a seguir parece derivativo (sobretudo a segunda história, com Greta Gerwig, Kieran Culkin e um casal trissómico, bastante inconsequente), à medida em que o próprio cão vai sendo remetido para a margem narrativa, mero “fil rouge” a fazer a ligação entre episódios.

A terceira história (com Danny DeVito num amargurado e frustrado professor de argumento numa escola de cinema) parece uma variação sobre um modelo de personagem bastante rodado (o filme cita explicitamente Jerry Seinfeld, Larry David e Woody Allen mas lembramo-nos deles ainda antes da citação aparecer), onde o mais significativo — e eventualmente “pessoal” — passa na violência do olhar sobre os “jovens”, os estudantes da escola, incapazes de citar um título dum filme, e oscilando entre projectos de “super-heróis” e projectos que lidam com “género e raça”.

DeVito, actor que se vai tornando raro e que nem sempre viu explorado o seu lado mais soturno, aguenta bem o episódio, mas para garantir que, apesar da quebra e da irregularidade de Wiener Dog, as coisas acabam na mó de cima, na quarta história surge a majestosa Ellen Burstyn, a dominar tudo por detrás de uns grandes óculos escuros, numa “velha senhora indigna” (“arte? posava nua e abria as pernas”) com pouca paciência para a neta que lhe vem apresentar o namorado e pedir dinheiro emprestado. Burstyn quase não fala, praticamente se limita a ouvir; é, como o cão, uma testemunha. Num acesso de generosidade e, coisa rara nele, compaixão pela personagem, Solondz dá-lhe um destino diferente do do salsicha — e se há muito se perdera o valor simbólico da presença do cão (representar uma forma de “inocência”) ele é ligeiramente recuperado naquele plano final, bastante horrível, em que ficamos a ver o que lhe aconteceu.

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