De câmara ao ombro até ao 3D

De Charlie is my Darling a Monterey Pop, de Ziggy Stardust a U2 3D, uma história de filmes-concerto. Primeiro o olhar curioso perante uma nova realidade e a vivacidade da emergente cultura pop. Depois o cinema como possibilidade expansão criativa. Por fim, a tecnologia.

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David Bowie convocou D.A. Pennebaker para que a morte de Ziggy Stardust fosse imortalizada em todo o seu esplendor: Ziggy Stardust & The Spiders From Mars

A pulsão era documental, mesmo quando o objectivo principal passava pelo mero exercício de marketing. Isto porque o simples facto de dar a ver, num tempo em que ver era quase impossível se não estivéssemos lá, seria, mais que suficiente, desejável. Quando Andrew Loog Oldham, o manager que definiu a imagem dos Stones como bad boys do rock’n’roll – a famosa paragona “Deixaria a sua filha sair com um Rolling Stone?” foi invenção sua –, contactou o realizador Peter Whitehead para seguir a banda num par de datas na Irlanda, sabia perfeitamente o que estava a fazer.

O ano era 1965 e os Stones tinham acabado de chegar ao topo das tabelas com Satisfaction. Por onde passavam, geravam euforia e provocavam tumultos entre a juventude de líbido descontrolada, a polícia que tentava controlar a juventude em marcha e os adultos que abanavam a cabeça em reprovação. Bastaria apontar a câmara na direcção certa e o trabalho estava feito. Whitehead fê-lo e Charlie is My Darling mostra a banda antes do mito, com as invasões de palco, a visceralidade e a inocência dos primeiros anos – tão diferente da extravagância preparada para emissão televisiva de Rolling Stones Rock And Roll Circus (1968), qual espectáculo vaudeville insuflado do espírito da Swinging London em que também participaram The Who, John Lennon ou Yoko Ono.

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D.A. Pennebaker seguiu Bob Dylan durante a sua digressão britânica de 1965. O seu olhar tinha tanto de espanto quanto de curiosidade e procurava capturar algo em formação, em ebulição, em movimento constante. Don’t Look Back, chamou-lhe

Um ano antes de Charlie Is My Darling, os irmãos Maysles foram acordados de rompante uma manhã com uma proposta irrecusável. Porem as câmaras ao ombro – cinema verité, pois claro –, e seguirem os Beatles na sua primeira digressão americana – What’s happening! The Beatles In U.S.A. foi o resultado e é o melhor documento dos Beatles a atravessar um momento histórico, o da transformação em marco cultural do século XX. Aconteceu com os Rolling Stones e com os Beatles, aconteceu com D.A. Pennebaker, em 1965, às voltas no Reino Unido com o turbilhão provocado por Bob Dylan e aqueles que o rodeavam – Don’t Look Back é filme obrigatório para quem quer que se interesse por cinema e música popular. Não sendo nenhum deles um filme-concerto, ajudaram a definir aquilo que, nesses gloriosos primeiros anos da grande explosão pop, ele viria a ser.

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Rolling Stones, Charlie is my Darling
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Rolling Stones, Rock And Roll Circus (1968)

Aliado à procura de realismo associada ao cinema verité, surgia o espanto e uma certa curiosidade. Peter Whitehead e os irmãos Maysles desconheciam quase por completo aqueles que estavam a filmar. Conheciam-lhes vagamente o nome e ignoravam totalmente aquela música e o seu contexto, o que acaba por ser determinante para o olhar que projectaram: estavam a descobrir enquanto filmavam, o que sobressai na vivacidade das cenas e da montagem. Estávamos muito distantes de Martin Scorsese a filmar os veteranos Rolling Stones em Shine a Light (2008), quando o rock’n’roll já era linguagem com décadas de história. Estávamos distantes do mesmo Scorsese a criar essa monumental extravagância chamada The Last Waltz, filme-concerto da despedida da The Band (1978), que é também, de certa forma, a despedida da geração e do mundo (os anos 1960) a que pertenciam os intervenientes (a banda e os seus convidados, como Dylan, Neil Young ou Joni Mitchell).

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Rolling Stones, Shine a Light (2008)

De certa forma, estávamos até distantes do D.A. Pennebaker que, meros dois anos depois de acompanhar Dylan pelo Reino Unido, rumou até à Califórnia para acompanhar o primeiro grande festival rock, o Monterey Pop que nos mostrou a garrida contracultura do “Verão do Amor”. O mundo andava rápido e dois anos eram suficientes para que se tornasse mais familiar a linguagem da pop e do rock’n’roll, a da cultura juvenil com seus novos hábitos e reivindicações. As câmaras procuravam o contexto e o movimento, procuravam testemunhar e reproduzir as sensações que a música proporcionava – as labaredas e tremeluzirem na guitarra de Jimi Hendrix, as flores pintadas no rosto de Country Joe McDonald, o pé de Janis Joplin a marcar o ritmo no chão do palco, o povo colorido a contar o novo mundo por vir a polícias sorridentes.

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A aproximação ao espírito e ao contexto em que a música florescia era uma marca nos tempos em que a cultura pop se estabelecia. As imagens de Jimi Hendrix em Monterey Pop são disso um dos maiores exemplos

Desde Bing Crosby, seguido de perto e com maior sucesso por Frank Sinatra, que os músicos (e a indústria musical) sabiam que o cinema era um veículo privilegiado para aumentar o seu alcance junto do público e para cristalizar ou redefinir a sua imagem. A industria cinematográfica, naturalmente, também não ignorava quão benéfica podia ser para a bilheteira a presença em cartaz de uma estrela do mundo da canção. É pelo cinema, recorde-se, que Frank Sinatra se reergueu no período mais crítico da sua carreira, quando o seu Angelo Maggio de Até à Eternidade, de Fred Zinnemann (1953), o devolve a um estrelato que se julgava perdido para sempre. Com a explosão da cultura pop, porém, é no próprio momento do concerto e naquilo que o rodeia que se estabelece a ligação entre as duas linguagens. Primeiro, como escrevemos enquanto pulsão documental, enquanto registo do fenómeno musical – como nos supracitados, como no muito célebre Woodstock, de Michael Wadleigh, ou em Message to Love, de Michael Wadleigh, que regista o festival de Ilha de Wight de 1970, retratos de um levantamento e de um sobressalto cultural.

Filmes-concerto, no sentido em que Stop Making Sense é um filme-concerto em que música, cenografia e cinema são pensados em conjunto, são reflexo de uma consolidação do fenómeno pop – desaparece a novidade da histeria das multidões e a acção contracultural e surge de forma mais evidente a vontade de fazer do cinema uma nova extensão criativa dos músicos e bandas. Os Pink Floyd uniram-se ao realizador Adrian Maben para colocar a sua música a atravessar os tempos em diálogo com os espíritos da Antiguidade – em Live at Pompeii, de 1972, são filmados a actuar no anfiteatro de Pompeia perante bancadas vazias de público, canções ilustradas por cortes para imagens de lava expelida, cascatas ou mosaicos romanos.

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Pink Floyd, Live At Pompeii

David Bowie e Marc Bolan, pioneiros do glam e, consequentemente, da criação de um novo mundo de fantasia e libertação hedonista, reflectiram também essa nova realidade. No delirante Born to Boogie, realizado por Ringo Starr, Bolan conjuga a presença em palco dos seus T. Rex com sequências dramáticas devidamente surreais, na maior parte improvisadas, que não são mais que interessantes documentos do espírito dos tempos – do mesmo mal, aliás, sofre The Song Remains the Same, que capta os Led Zeppelin no seu período áureo e que é minado pelas sequências narrativas, pomposas, patetas, ou ambas, dedicadas a cada um dos membros da banda.

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Led Zeppelin, The Song Remains The Same

Bowie, por sua vez, convocou D.A. Pennebaker para que a morte de Ziggy Stardust fosse imortalizada em todo o seu esplendor – mestre na projecção de uma imagem, Bowie fizera da digressão do alienígena Stardust um acontecimento, e é o acontecimento, dramatizado por se tratar do registo de um fim anunciado, que vemos perante nós em Ziggy Stardust & The Spiders From Mars. Nesta altura, a proximidade ao objecto filmado era obrigatória, com rostos, corpo e movimentos em palco ora seguidos demoradamente, ora tentando reproduzir a dinâmica veloz que a música sugeria. Em cada momento, sobressaía a vontade de fazer corresponder a imagem filmada ao som e imaginário que a música projectava. Stop Making Sense deu o passo em frente, tornando a própria imagem filmada indistinguível do palco. O filme que Jonathan Demme realizou com os Talking Heads em 1984 foi, de certa forma, o corolário dessa relação entre cinema e concerto pop que se estabelecera desde meados da década de 1960.

Os filmes-concertos dos grandes eventos continuaram a surgir – podemos considerar enquanto tal a bombástica cobertura televisiva do Live Aid, por exemplo – e a implantação da linguagem MTV foi também fazendo o seu caminho, privilegiando a criatividade posta ao serviço dos telediscos. No olhar lançado pelo cinema, porém, a inovação tecnológica começou a ditar leis, com a música filmada a tornar-se mero veículo para exibição das novas possibilidades técnicas. Em Shine a Light, Scorsese pretendia mostrar-nos os Rolling Stones mais próximos que nunca – como se estivéssemos lá, não é? –, mas quase perdíamos a banda, o que eram os seus elementos e aquilo que nascia da união daqueles músicos num mesmo palco, entre a árida nitidez dos planos. Os Beastie Boys multiplicaram os olhares em Awesome, I Fucking Shot That (2006), distribuindo dezenas de pequenas câmaras pelo público e montando um filme a partir do que elas registaram, mas a experiência diz mais sobre a experiência mediática actual que sobre a música da banda. E os U2 criaram U2 3D, filme-concerto da sua Vertigo Tour que entrou para a história não pela música e pela forma como foi filmada, mas por ser o primeiro filme-concerto a utilizar tal tecnologia.

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Num momento em que é a tecnologia a dominar o olhar sobre a música, os LCD Soundsystem criaram o seu filme, Shut Up And Play The Hits, como fazem a sua música: uma consciência do presente alimentada por todo o passado que os antecede

Talvez não seja coincidência que, na história recente, um dos filmes-concertos mais conseguidos tenha origem numa banda que se criou enquanto tapeçaria de toda a história que a antecedeu. Shut Up And Play The Hits (2012) registou a despedida dos LCD Soundsystem em Madison Square Garden. Tal como a música da entretanto regressada banda de James Murphy, o filme de Dylan Southern e Will Lovelace deita mão aos sinais do presente e aproveita o mais que pode do passado: tem várias sequências fora do palco, entre o documentário e a ficção, tem imagens registados em câmaras utilizadas pelo público, procura um olhar próximo e o sentido de cena criado pela disposição da banda em palco. Vemo-los e romantizamos o que vemos. Há muita verdade nisso. 

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