Jacques Demy – na outra banda da vida

Tudo passou, a festa acabou, é sempre de uma quarta-feira de cinzas que Jacques Demy olha para trás. Um cinema encantado, poderosamente realista. Um cinema que entristece.

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Para Demy, a vida adulta consiste no aceitar, com os olhos molhados de lágrimas, que nunca mais voltaremos a ter a rosa que um dia me deste — Anne Vernon e Catherine Deneuve, Os Chapéus de Chuva de Cherbourgo

Atrás de cada vidraça, uma personagem. Em cada prédio, um destino. Este o titânico projecto de Balzac que, na sua Comédie Humaine, foi povoando cada rua, beco, cada bairro de Paris (e não só), com aquela multiforme humanidade que inventou, para desvendar a metrópole que nascia. E é o projecto romanesco de Jacques Demy, que faz passar pelas suas cidades do Loire, Nantes em primeiro lugar (Lola), Cherburgo ou Rochefort depois, pelas mesmas ruas, mesmos portos, pelas mesmas arcadas que há ainda em Nantes, esplendor da  cidade comerciante, pelas mesmas pontes, mesmos portos, carrosséis, uma catrefada de gente, marinheiros em licença, operários, professoras de ballet, bailarinos, raparigas de entretém, empregaditas  de loja, patroas, feirantes, gasolineiros, meninas que ainda vão ao colégio.

E de tal forma povoou que, em 1972, de Renault 4, ainda lá fomos uns quatro, de Lisboa muito cedo até à praça de Rochefort, à Passage Pommeraye de Nantes, ao porto de Cherburgo. E que triste fiquei quando, na marginal de Nantes, naquele prédio de gaveto onde as raparigas cantavam, de maillot rendado e para os marinheiros de uma noite, não havia cabaré nenhum, tinha sido só um letreiro que o seu genial cenógrafo, Bernard Evein, lá colocou. E era pois, era Eldorado o nome do cabaré que nunca existiu. O lugar inventado ali mesmo na rua, mas na outra banda da vida? Era de lá que saiam, pelas primeiras luzes da manhã cinzenta e branca (Raoul Coutard, o director de fotografia), com uma gabardina por cima do maillot, as raparigas que entretinham os homens e tinham um filho para criar umas ruas adiante, quarto alugado. 

É que não há famílias no cinema de Demy, quando muito irmãs (e são gémeas, de Junho...), irmãos mais novos que vão buscar à saída da escola. Há é senhoras mais velhas, impecavelmente penteadas, com um sorriso de boas vindas, mas não transportam cadáveres de marido nem rendas de divórcio, trabalham. Atrás dos balcões dos seus cafés, lojas, caixas registadoras, estas senhoras continuam histórias que vêm muito de trás (como a Madame Desnoyers de Lola, a delicada Elina Labourdette que aqui continua o papel que tivera nas Dames du Bois de Boulogne de Bresson) ou são elas próprias figuras vindas de outros cinemas, a Anne Vernon dos Parapluies, a Danielle Darrieux das Demoiselles, a Diana Dors (!) do Flautista de Hamelin, a formidável Micheline Presle no Evènement..., actrizes abandonadas pelos seus coetâneos da Nouvelle Vague, actrizes de Becker e Ophüls, midinettes ou grandes aventureiras de um cinema popular mas  já antigo. Mesmo, claro, a Anouk Aimée dos caveaux existencialistas. E a Moreau dos teatros equerdistas, do TNP e de Avignon. E quase não há homens aqui, só rapazes. Mesmo Gene Kelly,  com o seu sorriso solar, nunca o veríamos a tomar conta de património, vem do cinema, voa de branco, dança pelas ruas de Rochefort como dançou nos portos de Nova Iorque no On the Town, filme inaugural do realismo dançado (Kelly e Robbins e Bernstein lá estão, patriciais). Só Piccoli (tão tímido, nas Demoiselles, que actor!), e mais tarde com Montand e sobretudo com Jean Marais (vindo de um cinema também ele encantado, o de Cocteau) é que teremos homens feitos, feridos também, suicidas até. Mas os rapazes que vemos por Cherburgo ou Rochefort são frágeis, indecisos, imberbes (Jacques Perrin aqui, como Donovan mais tarde, hippie) de um lado para o outro em quartos alugados (Richard Berry!), com papéis de parede sujos, magoados (ah, o Marc Michel, o actor que fez de Roland Cassard na Lola e que virá a casar-se com a Deneuve nos Parapluies! A pena de não ter sido ele, indiferente, o Estrangeiro que Visconti foi dar a Mastroianni). Ou mesmo grávidos de nove meses como Mastroianni no Evènement.

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Jacques Demy, realizador Alain MINGAM/Gamma-Rapho via Getty Images

Embora todos amem alguém (e perdidamente, diria), lá vieram os erros e a má fortuna que mais uma vez se conjuraram. Ninguém casa por amor em nenhum dos filmes de Demy. Apenas, em Lola, Cécile (é o seu nome verdadeiro) reencontra, no porto de Nantes, o americano que é pai do seu filho e com ele parte, mas tudo acaba mal, em Model Shop, o filme esquecido que foi filmar a Los Angeles, ele que, na Côte d´Azur  filmara La Baie des Anges, a derradeira perdição, a de Jeanne Moreau pelos casinos ou nas camas.

Ah, e Demy gosta das avenidas marginais, as longas avenidas junto aos portos, Nice (o plano de abertura da Baie das Anges, só ele marcaria um enorme cineasta lírico), Nantes, Rochefort. Onde passam camiões, onde há pontes móveis, por onde  se sai da cidade, onde se pede boleia,  onde se chega “viajando/ de cidade em cidade/pois a estrada/ é a nossa morada.”

E é por essas estradas que cá chegou a América, no pós-guerra da adolescência de Demy (nascido em 1931), o filho do garagista, a América optimista que entreviu na marginal de Nantes, vibrante, a dos descapotáveis, dos carrosséis e marinheiros, a dos cinemas, a do scope e das danças, a América das cores brilhantes, dos trompetes. Ou não é a  América é a Outra Banda de Nantes?

Mas também é nessas pontes, nessas marginais, que perdemos, que nos desencontramos daquela que amamos. Ou nas gares de onde o pobre rapaz dos Parapluies há-de partir para a Guerra da Argélia, e assim perder para sempre a sua Eurídice.

Pois é, é de desencontros que é feito o cinema de Demy, são breves os tempos dos sorrisos (Gene Kelly/Dorléac à porta da escola e a combinação dela que se vê), o mundo são portas de entrada e de saída em que ninguém se vê, como no geométrico (e tão cru) final das Demoiselles (não há noites mais lindas do que as noites de Jean Rabier, o director de fotografia, não há!). Ou no dilacerante final dos Parapluies, tão triste como o do Esplendor na Relva, numa bomba de gasolina, mas sem ressurreição de veado algum como a que Jeff Bridges vai conseguir nesse filme que podia ser de Demy, mas é de John Carpenter, o milagroso Starman.

É assim a vida, parece dizer, um ai que mal soa, pois a rosa que esta manhã floriu não sei se não murchou já . E a rosa que esta manhã floriu são as irmãs Dorléac ao piano (mi sol fa re mi do...), os camionistas na praça central, brilhantes como os papéis de lustro da nossa infância.  

Mas tudo passou, a festa acabou, é sempre colocando-se a partir de  uma húmida quarta-feira de cinzas que Demy olha para trás, no seu cinema popular e realista.

Há, nos Parapluies, aquela ida ao Teatro Municipal para ver a Carmen de Bizet. E de onde os namorados saem,  passeando pelas ruas molhadas, abrindo os chapéus de chuva. A ópera dissera tudo aquilo que eles teriam querido dizer um ao outro, beijara-os.

É esse o beijo que nos dá  Jacques Demy,  propõe-se este lugar, um cinema à sombra de Bizet mas também de Bernstein, um cinema poderosamente realista. E encantado. Um cinema que entristece.

Como se, para ele,  a vida adulta consistisse no aceitar, com os olhos molhados de lágrimas, que nunca mais voltaremos a  ter  a rosa que um dia me deste.

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