Os ossos de choco de Philip Guston

Na programação paralela à Bienal de Veneza, a antológica do pintor Philip Guston é uma das melhores exposições que decorrem ainda na cidade italiana.

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O mérito desta exposição é o de nos dar a entender que, entre a pintura e a poesia, o que importa é ser. É tocar-se, e nunca deixar de dizer que se é. Tal como sucede nos poetas e no pintor que aqui encontramos Lorenzo Palmieri
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Qualquer visitante de Veneza que para aqui se dirija sabe que há dois museus fundamentais que não pode deixar de ver: a colecção Peggy Guggenheim e a Accademia. Ambos ficam muito perto um do outro, e  simbolizam a atracção que Veneza, vista como um lindíssimo simulacro a-histórico, um compêndio da história da arte ocidental, sempre exerceu sobre os artistas do Novo Mundo. Philip Guston (1913 – 1980), nome maior da arte norte-americana do século XX, foi um destes artistas. Em novo, integrou o grupo dos muralistas norte-americanos, depois adoptou a abstracção lírica e finalmente, a partir de 1970 (e depois de constatar com desgosto que o abstracionismo se estava a transformar num academismo), regressou à figuração, que trabalharia até à morte. Admirava e estudava a arte do passado, principalmente a arte italiana, chegando a fazer estadias em Itália que determinaram a sua obra.

A exposição que decorre na Accademia até Setembro, Philip Guston & the poets, como o nome indica, não se concentra em criar uma retrospectiva global do trabalho do artista, mas em destacar as relações entre certos núcleos do seu trabalho e obras de cinco poetas. O curador, Kosme de Barañano, estabeleceu paralelismos entre  pinturas e desenhos de Guston, e poemas específicos de D. H. Lawrence, W. B. Yeats, Wallace Stevens, Eugenio Montale e T. S. Eliot. De facto, Guston toda a vida se interessou por poesia, sabendo-se que manteve relações de amizade com um número considerável de poetas não só da sua geração como mais novos. A sua mulher também escrevia poesia, e a exposição contém um pequeno núcleo de ilustrações feitas para a obra da esposa.

Este tipo de associações poderá parecer anacrónico. De facto, a crítica contemporânea da arte almeja a uma independência da literatura que não raro apenas conseguiu, noutras épocas, falar sobretudo da sensibilidade de quem escrevia, mais do que aquilo que era suposto o crítico criticar… Contudo, é evidente que nenhuma ramificação da criatividade humana pode viver isolada das outras. Guston sabia-o. E quando chegou a altura de arriscar uma nova linguagem – a da figuração -,  procurou exemplos naqueles que, na pintura ou na escrita, tinham também tentado o mesmo. O seu panteão de antepassados ideais tanto vai de Bellini – e há um maravilhoso Bellini que nos acolhe à entrada da exposição – como aos poetas já citados. E, porque Guston era um homem do seu tempo e intuía que a cultura popular lhe podia oferecer o léxico formal de que necessitava, à banda desenhada. Reconhecemos a iconografia típica dos comics americanos em boa parte da sua pintura.

A montagem, que ocupa todo o espaço de exposições temporárias da Accademia, divide-se assim em cinco grandes núcleos, cada qual dedicado a um dos autores mencionados. O curador não organizou a disposição das peças por ordem cronológica, mas por afinidades temáticas. Por isso, é possível encontrar as grandes telas abstractas do imediato pós-guerra lado a lado com obras do final da década de 70. Mas o que ressalta é a vontade de criar uma nova linguagem visual, a exigência que se nota de obra para obra, a contenção formal e cromática a que o pintor se obriga para criar. Ou, mesmo, os meandros indizíveis do próprio processo criativo. Não se representa ele a si próprio a dormir e a sonhar com cores e pincéis?

Tomemos como exemplo da riqueza de sentidos que a obra de Guston abre a sua relação com Eugenio Montale. Deste poeta, falecido em 1981, Barañano escolheu o livro Ossos de Choco, datado de 1925, redigido quando Montale vivia nas ilhas vulcânicas das Cinque Terre. O livro é um diário de férias onde o autor escolhe voluntariamente uma linguagem muito distante dos floreados académicos e narra experiências que têm a ver com a valorização das pequenas coisas insignificantes, como os ossos de choco do título, esqueletos que o mar atira à areia e aos quais não atribuímos valor. Ora, na consideração da iconografia de Guston, encontramos também estas imagens sem qualidades, como as tampas de caixotes do lixo, os sapatos, a lâmpada de tecto, a mão que segura o cigarro, a boca, o olho. Guston, depois de abandonar o gesto pelo gesto, efectua um descida à origem da pintura que, neste núcleo, não anda longe de uma convocação das paisagens desoladas da pintura metafísica de Giorgio de Chirico, que admirava.

Montale é o poeta que se aproxima mais da personalidade e da obra de Guston. Noutros autores, como por exemplo Yeats, o pintor apropria-se de referências iconográficas explícitas como sucede no poema Bizâncio, o mesmo que começa com o célebre verso “Este país não é para velhos”. Bizâncio, um lamento sobre a morte e uma antecipação do renascer possível, convoca uma imagem que flutua como uma sombra; no fundo, uma metáfora da renovação da pintura que o autor sentia dever fazer. O grande mérito desta exposição não é contudo o de fornecer legendas para a pintura de Philip Guston através da poesia.

Trata-se de linguagens diferentes, que apenas dizem o que são. Guston falava de um momento em que a pintura lhe dizia a ele que era assim e não de outro modo, e isto depois de errar e recomeçar o mesmo até acertar. O mérito desta exposição é o de nos dar a entender que, entre a pintura e a poesia, o que importa é ser. É tocar-se, e nunca deixar de dizer que se é. Tal como sucede nos poetas e no pintor que aqui encontramos.

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