Autarca atestou residência a cidadão cigano, mas negou-lhe sepultura alegando não o conhecer

A decisão do presidente da Junta da Cabeça Gorda, que alegou que o cidadão não residia na localidade, provocou um confronto entre o PCP e do BE e a aprovação de um voto de condenação no Parlamento

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ADRIANO MIRANDA

Doze dias depois de Álvaro Nobre, presidente da Junta de Freguesia da Cabeça Gorda/Beja, ter recusado o enterro do cidadão cigano José António Garcia, de 55 anos, alegando que este não residia nem estava recenseado na localidade, o autarca passou à família do falecido um atestado de residência para ser apresentado na Segurança Social. Diz o documento, registado com número 66 de 2017, e facultado ao PÚBLICO, que “Anabela Fernanda Garcias e José António Gaspar Garcia estavam a viver maritalmente em união de facto e residem há mais de dois anos na Estrada do Cemitério, na freguesia da Cabeça Gorda”.

O documento foi assinado por Álvaro Nobre no dia 12 de Julho de 2017 “perante as declarações testemunhais de dois cidadãos eleitores recenseados na freguesia” da Cabeça Gorda, indicados pela família de António Garcia. A escolha das testemunhas incidiu sobre duas mulheres que não pertencem à comunidade cigana para “acautelar suspeitas de que as suas declarações estavam viciadas”, explicou Prudêncio Canhoto, mediador cigano, ao PÚBLICO. A família de António Gaspar Garcia comprova ainda que este se recenseou na freguesia da Cabeça Gorda “a 31 de Maio de 2016 e tinha o número de eleitor 2696”.

Estas informações, justifica o mediador cigano, “pretendem pôr termo à polémica e às afirmações de Álvaro Nobre”. No entanto, o acontecimento já extravasou para a Assembleia da República e suscitou um confronto entre deputados do PCP e do BE depois de estes últimos terem apresentado no dia 19 de Julho um “voto de condenação e repúdio pela discriminação contra a comunidade cigana de Cabeça Gorda”.   

O documento refere que, “sendo o cidadão falecido membro da comunidade cigana e tendo essa circunstância constituído motivo realmente decisivo para a recusa da realização do velório e do enterramento do corpo nos equipamentos públicos de Cabeça Gorda, essa recusa revela-se um acto de discriminação grave em violação da Constituição da República e da lei”.

O voto de condenação e repúdio foi aprovado com os votos do BE, PAN e dos deputados do PS João Soares e Idália Serrão. PCP e PEV votaram contra e o PS, PSD e CDS abstiveram-se.  

O líder parlamentar do PCP, João Oliveira, acusou o BE de ter assumido uma “falsidade” e repetiu os argumentos do presidente da Junta de Freguesia da Cabeça Gorda de que o falecido “tinha uma casa arrendada noutra freguesia” e “não há registo daquele cidadão” nos serviços da autarquia. O presidente do grupo parlamentar comunista salientou que a comunidade cigana de Cabeça Gorda tem beneficiado do apoio da junta de freguesia, fornecendo-lhe “água potável, Internet e instalações para festas”.

Prudêncio Canhoto contrapôs que “nem os casamentos na sua comunidade [Álvaro Nobre] autoriza”.

Uma delegação de organizações de apoio à população cigana vai ser nesta quinta-feira recebida pela secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, para debater os temas de maior preocupação para as comunidades desta etnia dispersas pelo Baixo Alentejo. Da agenda constam os incidentes ocorridos há alguns meses em Santo Aleixo da Restauração. A igreja da comunidade cigana naquela freguesia do concelho de Moura foi recuperada mas novamente destruída.

Beja expulsa ciganos de acampamento

Mas há um outro conflito que se avizinha no horizonte. A Câmara de Beja notificou nesta quarta-feira 25 famílias (50 adultos e 150 crianças e jovens) para levantarem as respectivas tendas instaladas no Bairro das Pedreiras, na periferia das cidade, por considerar que se trata de um “acampamento ocasional ilegal em terrenos do município”. Estas famílias têm um prazo de dez dias úteis para abandonar o local. Se não o fizerem, a autarquia “procederá à execução coerciva” da notificação. As despesas desta acção ficam a cargo dos “infractores”.

Esta decisão coloca em causa a frequência escolar de cerca de meia centena de crianças, bem como a localização das cerca de 25 famílias que, face à lei, estão abrangidas pelos condicionalismos impostos aos acampamentos ocasionais. Estes, quando fora dos locais adequados “à prática do campismo e caravanismo, ficam sujeitos à obtenção de licença da câmara municipal”, diz a lei. O tempo de permanência no terreno de que as comunidades ciganas pretendam dispor fica dependente “da autorização expressa do proprietário do prédio” e do parecer favorável do delegado de saúde e do comandante da PSP ou da GNR, consoante os casos. Na prática, a legislação força à reactivação do nomadismo.     

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