Treblinka, o filme e a realidade

Treblinka, de Sérgio Tréfaut, é um excelente documentário que vai ao âmago do que foi o Holocausto. Recomendo vivamente.

Como fazer um filme sobre Treblinka, o campo de extermínio nazi que mais vidas ceifou no mais curto espaço de tempo? Como representar Treblinka, quando nada, absolutamente nada resta da fábrica de morte mais eficaz da denominada Aktion Reinhardt destinada à criação, sem precedentes na história, de centros exclusivamente votados ao extermínio de judeus? Como fazer um filme sobre um espaço onde a exuberância da natureza escarnece do sofrimento aí enterrado, onde o silêncio de chumbo sufoca a linguagem humana? Um espaço onde apenas a nossa imaginação à solta e a presença silenciosa de milhares de pedras abruptas com os nomes das comunidades desaparecidas evocam a dimensão da catástrofe...

Precisamente, talvez seja esta ausência que permitiu a Sérgio Tréfaut realizar o filme Treblinka, agora disponível nas salas de cinema. Confesso que fui à antestreia com uma expectativa mitigada, mas a verdade é que se trata de um belo filme, um dos poucos filmes sobre o Holocausto que, mais do que à compaixão, apela à reflexão.

Na verdade, se Auschwitz é o campo que melhor espelha a política racial e a ideologia do Estado de Hitler e Himmler, Treblinka é o símbolo maior da hedionda máquina de extermínio nazi, com perto de um milhão de judeus assassinados em cerca de um ano. Chegados a um simulacro de estação de comboio, estes eram recebidos por um SS que lhes fazia um discurso tranquilizador dizendo que tinham chegado a um campo de trânsito de onde seriam posteriormente enviados para campos de trabalho a leste. Entretanto, para evitar epidemias e contágios, iriam tomar um banho de desinfecção. Deveriam também deixar todos os seus pertences numa barraca cujo letreiro afixava a palavra “Banco” e que lhes seriam devolvidos posteriormente. Todo esse discurso, incluindo o discurso visual, era destinado a ludibriar as pessoas para que não suspeitassem do seu destino final. Imediatamente a seguir eram levadas às barracas onde se despiam e encaminhadas para as câmaras de gás por um caminho perversamente baptizado pelos nazis de “caminho do céu”... Duas horas apenas, nada mais, e o caminho parava aí.

Tréfaut optou por dois elementos simbólicos para representar o campo de Treblinka e o Holocausto: o comboio e a nudez. Treblinka, o filme, encerra-se num comboio em movimento perpétuo, sem ponto de partida nem de chegada, supostamente transportando dia e noite uma carga humana sempre renovada porque imediatamente aniquilada e imediatamente substituída à chegada. Uma chegada que nunca se vê, que apenas se adivinha. Um comboio que oscila ao ritmo do seu próprio ruído, metálico, lancinante, obsessivo e cujo destino tem apenas um sentido.

No filme de Tréfaut, a nudez também é simbólica. Os personagens estão nus, viajam nus, movem-se nus. Porque a nudez forçada era o princípio e o fim do caminho do “céu”: despojados dos cabelos, despojados das roupas, despojados da humanidade. Nus, expostos, vulneráveis, indefesos, sem sexo nem erotismo. Como pode um ser humano defender-se em situação de nudez forçada?

Os próprios actores são simbólicos, talvez sobreviventes, talvez já mortos, talvez mortos-vivos, em todo o caso personagens de um enredo que os ultrapassa, de um destino que não comandam. Não falam, emprestam o corpo a vozes, essas sim bem reais. Vozes como a de Chil Rajchman, provavelmente o “Último Judeu” sobrevivente de Treblinka, cujas memórias assim intituladas constituem o fio condutor do documentário.

As leituras que fazemos de um quadro, de um livro ou filme são sempre diversas e subjectivas. Para mim, Treblinka é um excelente documentário que vai ao âmago do que foi o Holocausto. E, posso estar enganada, mas creio que também tem o mérito de ser o primeiro documentário português sobre a engrenagem do genocídio nazi, em si mesma. Recomendo vivamente! 

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