Olhar para dentro

Portugal tem um problema político. Nos últimos dias, não há melhor símbolo para esse problema do que o caso do SIRESP.

Portugal não é um país complicado nem ininteligível. Não é um país com um problema identitário ou constitucional. Não é um país com uma geografia difícil. Não é um país inseguro nem violento. Pelo contrário, é fácil tomar o país, como fazem os turistas, a imprensa internacional e até nós próprios nos dias bons, por uma espécie de paraíso terrestre: tranquilo, ameno e belo, afável e cordial, rico em história e com potencial para o futuro.

Mas esta semana morreram quase setenta dos nossos concidadãos num incêndio. Esse incêndio, por invulgar que tenha sido, faz parte de um tipo de desastre natural recorrente, quase crónico, em determinadas épocas do ano. E não é fácil explicar a nós mesmos a natureza do choque que isto representa. O país passou pelo luto e a raiva, a indignação e o fatalismo.

Como escrevi na última crónica, acredito que o fatalismo é injustificado. Se aceitarmos, como hipótese de trabalho, que os incêndios podem ter muitas causas — algumas das quais são sazonais e as outras globais, como as alterações climáticas — mas que algumas dessas causas e todas as consequências estão ligadas a um certo subdesenvolvimento nosso, então esse subdesenvolvimento poderá ser ultrapassado. O subdesenvolvimento não foi uma fatalidade noutros campos, da mortalidade infantil à sinistralidade rodoviária. Não tem de o ser nos incêndios.

Portugal tem um problema político. Nos últimos dias, não há melhor símbolo para esse problema do que o caso do SIRESP, o sistema de comunicações utilizado pelo estado para situações de emergência, e que no sábado falhou. Não sabemos se essa falha teve implicação direta na sequência de eventos que levou à morte de tantas pessoas, mas parece certo que o sistema já falhou em várias outras ocasiões e que nada garante que não venha a falhar no futuro. Ora, desfiar a história do SIRESP, como o Público tem feito nos últimos dias, é desfiar a história da nossa política na última década. Lá estão as antigas empresas do regime, da SLN e do BPN ao BES e à PT. Lá está uma PPP a carregar no sobre-faturamento e a prestar um serviço defeituoso, só porque o cliente é o estado e o estado paga a renda. E lá está a pergunta inevitável: faz sentido que tenhamos nacionalizado tantos bancos, e que o sistema de telecomunicações de emergência de que depende o estado não seja nacionalizado?

Portugal tem um problema territorial. Não me refiro só à questão florestal, mas à assimetria entre litoral e interior que se acentuou cada vez mais nos últimos anos. Essa assimetria agrava as desigualdades sociais que o país já tem, por afastar uma grande parte da população, em geral empobrecida, dos serviços públicos que serviriam para aliviar os efeitos da pobreza. Quanto menos gente e menos atividade económica, mais insustentável é a situação do interior. A pergunta de futuro que vale a pena fazer é a seguinte: tem mesmo de ser assim? Num país onde as distâncias se encurtaram e onde as redes de comunicação são em geral boas, não se pode revalorizar a qualidade de vida do interior para que ele se torne mais desejável e, por consequência, economicamente mais viável?

Não precisaríamos desta tragédia para acordar para isso, mas Portugal precisa ainda e sempre de três coisas: valorizar as pessoas, o conhecimento e o território. E tem uma sociedade coesa e democrática que pode conseguir fazê-lo, sob a condição de ser mais disciplinada e exigente. O máximo que um não-especialista em incêndios — categoria que, por muito que nos custe, nos abarca a praticamente todos — pode fazer é tentar balizar o debate e lutar para que ele não seja inconclusivo.

Não vai ser fácil, ainda durante bastante tempo, conseguir digerir o que se passou: a justaposição do tipo de desastre natural a que erradamente nos habituámos com a morte tão repentina e brutal da nossa gente. Não será das piores reações possíveis se esta dor, que nos leva a olhar para dentro à procura dos sentimentos certos, nos ajudar a encontrar forças para encarar as nossas desigualdades, a nossa desorganização e, no fundo, o subdesenvolvimento social e político que nos falta ainda resolver.

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