Agnès Varda não encontrou o filósofo Godard mas Michel Hazanavicius encontrou o cómico Jean-Luc

Louis Garrel faz de Jean-Luc Godard, ainda jovem artista mas em crise, em Le Redoutable, o filme de Michel Hazanavicius apresentado no Festival de Cannes

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Os caminhos de Visages, Villages vão levar Agnès Varda, cineasta, e JR, artista da street art, a casa de Jean-Luc Godard. Ela tem 89 anos, ele menos 50, encontram-se como se o devessem ter feito há muito, muito tempo, ele com a sua atenção amorosa aos mais velhos, à avó e a todas as rugas que fotografa nos retratos gigantes que cola nas paredes do mundo, ela com uma curiosidade inquieta e sem desculpas por tudo, pelos murais que são os rostos e pelas ruas. A viagem pela França esquecida é um investimento de memória e de imaginação, como se devolvessem isso a quem encontram, filmam e fotografam. Ficam as marcas. E obviamente que na viagem, no camião de JR, que é Visages, Villages (fora de competiçao) a cineasta e o artista gráfico imaginam também a sua relação. (A prova do que os une: ele convenceu-a a aderir ao Instagram)

No final, chegaria a vez de Godard... Varda lembrou-se dele porque JR nunca tira os óculos, e ela conseguiu que Jean-Luc se deixasse fotografar e filmar por ela sem eles. Dão um salto à Suiça, encontro marcado na casa de Jean-Luc… mas não haverá Godard: a recebê-los uma mensagem escrita na janela, é o afecto dele, e as desculpas à maneira dele, entregue à companheira de Jacques Demy. Tudo é devolvido por Agnès, que por instantes mergulha profundamente nas suas memórias. E atira-lhe zanga e emoção. Isto é, devolve o amor a essa personagem complexa que define como poeta, filósofo e experimentador

Mas os espectadores do Festival de Cannes viram Godard. E tiveram direito a agitação e frisson, quando os alertas de segurança máxima, sábado ao fim da tarde, fizeram evacuar as salas do Palais des Festivals e atrasaram sessões. Teria sido uma ameaça de bomba feita por Jean-Luc?, ouviu-se alguém brincar no meio daquilo que ainda não se sabia o que era (era um pacote abandonado considerado suspeito). “Cancelem o festival”, alguém gritou tomando-se por um Godard na Croisette em Maio de 1968. É que o filme que a imprensa se preparava para ver era Le Redoutable, de Michel Hazanavicius. Era aí que ia aparecer Godard. Interpretado por Louis Garrel, que faz um Jean-Luc ainda jovem artista mas em crise, a afastar-se do cinema, a caminho de ser vieux con. Isto por alturas de La Chinoise (1967), em que transformou uma filha de família, Anne Wiazemsky, em teórica do marxismo-leninismo. Ela retribuiu, fez da sua relação com Godard um livro, Un an après, e é esse livro que Michel Hazanavicius adapta. 

O Godard burlesco

É uma comédia. É um "tudo o que você julga saber sobre Jean-Luc Godard". Que faz de Godard uma personagem burlesca. É um pastiche – como fez, em O Artista, com o cinema mudo, Hazanavicius tem apenas uma leitura, se assim se pode dizer, das superficies porque não cabe mais nos gags. Por exemplo, aquele de montar sobre a imponência dos rostos de Artaud e Falconetti na Paixão de Joana d’Arc, de Dreyer, que as personagens de Anne e Jean-Luc vêem no cinema, o som dos arrufos de jovem casal – para tentar destruir uma coisa e outra, é claro, no mínimo para usar e deitar fora.

Às tantas durante o filme, ainda tocados pela atabalhoada coreografia de segurança que se verificara antes, tudo parece de facto ligado, tudo parece patifaria de mau gosto. (Não por causa da comédia, nem por causa da dessacralização, porque obviamente a personagem Godard permite essa possibilidade, convida-a mesmo). Mas diga-se que em declarações à AFP Anne Wiazemsky terá aprovado o filme e saudado a transformação de Godard em cómico involuntário – mas quantos gags se têm de fazer com os óculos? “O realizador e o actor conseguiram fazer que esta personagem odiosa, nos seus discursos grotescos, seja comovente e engraçada”, disse Wiazemsky.

E a brincadeira em Cannes é que não havendo mais um Woody Allen, há um (pela primeira vez a concorrer no festival) Noah Baumbach. Que faz as despesas da família novaiorquina de classe alta e artística com as suas neuroses. E como acontece ultimamente com Woody Allen, sendo que este é um filme que continua a ser de Noah Baumbach, nada é excessivamente inspirado, nada é dolorosamente extravasado, o cinema esta contido por um pacto de não agressão. É pouco. The Meyerowitz Stories é mais um filme Netflix para ver no conforto dos pequenos ecrãs, não é preciso sair de casa para ir ver a segurança de Dustin Hoffman (o pai Meyerowitz), Ben Stiller, Adam Sandler ou Candice Bergen.

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