As regras do jogo

O filme de Belvaux é sobretudo a exploração de um argumento inteligente mas esquematicamente pedagógico, assente em personagens e interpretações justas.

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Como documento “sociológico”, é demasiado previsível: retrato do “povo de Le Pen”
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Há uma cena terrivelmente violenta lá para o final de Esta Terra é Nossa. É quando os pais de um miúdo adolescente descobrem aquilo que o rapaz passa os dias a fazer, enfiado no quarto, em frente ao computador: gerir e alimentar um site da mais histérica e sensacionalista propaganda islamófoba. A mãe, que já tínhamos visto e ouvido em tiradas racistas, reage com admiração; o pai, indivíduo silencioso de quem mal tínhamos ouvido uma palavra, reage mal. A mãe e o pai agridem-se mutuamente, perante o olhar inexpressivo do miúdo. Praticamente não se troca uma palavra, e depois Belvaux corta para outra cena. É um momento terrível, mas é um momento lógico: não há outra resolução para a profunda clivagem que divide as personagens de Esta Terra é Nossa que não a violência (e por ela, noutros termos, o filme se concluirá), o diálogo tornou-se impossível.

Procurar captar esta tensão e este mal estar no momento em que eles se encontram bem vivos e, tudo indica, longe do último capítulo, é a virtude maior de Esta Terra é Nossa. Como documento “sociológico”, é porventura demasiado ilustrativo e previsível: uma espécie de retrato do “povo de Le Pen”, filmado no Norte (na Flandres francesa, perto de Lens), onde tudo confere com as milhentas análises que já se escreveram sobre a ascensão dos movimentos “populistas” em França ou noutros sítios, os ressentimentos variados, os sentimentos de exclusão, catalisados contra os bodes expiatórios que estiverem à mão (os árabes, os imigrantes africanos). Lucas Belvaux faz o possível para evitar o maniqueísmo: ouvem-se bastantes barbaridades em Esta Terra é Nossa mas os que as proferem nunca se tornam, aos olhos da câmara, “monstros”.

Tome-se por exemplo a personagem do Dr. Berthier, eminência parda naquela região flamenga dum partido émulo da Frente Nacional: interpretado pelo excelentíssimo veterano André Dussollier (um regular de Alain Resnais) num prodígio de subtileza, é sempre um homem simpático, atencioso, de modos gentis, longe do estereótipo do fascista viscoso. Como a “correspondente” da própria Marine Le Pen, de resto, cuja personagem, entre a caricatura e o fac simile do original, tanto desagradou à própria e ao seus apaniguados (embora muito provavelmente também tenha contado o facto de ser interpretada por Catherine Jacob, popularíssima actriz do cinema e da televisão francesa, e porventura um ídolo do próprio “povo de Le Pen” — daí o sentimento de “traição” nalgumas reacções que pudemos ler).

Enfim, isto dito, e apesar das pinças de Belvaux, o filme em momento algum se confunde com uma “suavização” da FN. “Podemos ter mudado de estratégia, mas não mudámos de objectivo”, como diz o Dr. Berthier, e em última análise Esta Terra é Nossa, na sua dimensão “militante”, é uma exposição dessa estratégia (e do rabo que o gato da estratégia deixa mal escondido: as ligações neo-nazis, as organizações de “segurança”, os exércitos de trolls da internet, os ódios raciais variados, etc) dada de forma quase pedagógica, através do percurso revelador da protagonista (Emilie Dequenne, que há muitos anos foi a Rosetta dos irmãos Dardenne), uma jovem politicamente inocente, que se diz “mais à esquerda” por influência familiar (o pai é um velho comunista) mas também diz que “nunca vota porque não vale a pena”, escolhida como testa de ferro do partido para as eleições municipais por ser, em suma, o tipo de figura tenrinha e bem intencionada que se presta idealmente à manipulação pelos lobos em pele de cordeiro.

Um bocado esmagado pelo tema, Belvaux não se permite mesmo o tipo de invenção de que deu mostras nos seus melhores filmes (Para Rir ou aquela trilogia do princípio dos anos 2000, Em Fuga, Um Casal Encantador e Depois da Vida), e o seu filme é sobretudo a exploração de um argumento inteligente mas esquematicamente pedagógico, assente em personagens e interpretações justas. Mas, também pelo seu carácter irresolvido, em aberto, Esta Terra é Nossa é um filme que sabe que não pode “fechar” coisa nenhuma. Está tudo em andamento e — voltamos à cena que descrevemos no princípio — a tensão é demasiada para se dissipar sem violência. Nem Belvaux é Renoir nem este filme é A Regra do Jogo, muito longe disso; mas há nele uma consciência, semelhante ao que alguns (como Renoir) tinham em 1939, de que a “comédia” (“qual delas, senhor?”, perguntava-se no Renoir, e hoje a resposta também não seria fácil) se tornou imparável no seu rumo à catástrofe. E essa consciência o filme dá, com uma frieza que nem precisa de ser assustadora.

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