Sonia contra os tubarões

Uma personagem quase mítica na sua certeza e força: Clara, crítica musical aposentada, viúva, mãe e avó, uma sobrevivente, nunca uma vítima. Sonia Braga juntou Sonia a Clara. O resultado não é comum no cinema contemporâneo: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.

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Clara, a mulher no centro de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, não se deixa intimidar. Quando começa a planear a sua vingança, a primeira coisa que se vê é Clara saindo da água, como se tivesse ido buscar forças entre os tubarões

Em Recife, cidade do Nordeste brasileiro, a praia é um negócio matinal. O sol acaba pouco depois das três da tarde, pura contradição num lugar onde não existe Inverno a sério e que tem uma temperatura média anual acima dos 25 graus. Não é um fenómeno da natureza: o sol não dura porque os arranha-céus à beira-mar começam a projectar a sua sombra comprida e sinistra sobre a praia. Aos banhistas restam duas opções: ocupar os últimos lugares ao sol, no intervalo entre uma torre de apartamentos e outra, ou aceitar a derrota.  

Outro fenómeno estranho, observável a olho nu: ninguém entra no mar. Alguns adultos chapinham como crianças, água pelo joelho é o limite, sobretudo nada de mergulhos. Ao longo da praia de Boa Viagem existem placas constantes, já empalidecidas pelo sol, que avisam do risco de um ataque de tubarão. Em 25 anos, registaram-se 26 ataques em Recife. A última vítima mortal foi uma turista de 18 anos, em 2013. O Recife aprendeu a lidar com a maldição praticando a abstinência.

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Clara, a mulher que está no centro de Aquarius, a segunda longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho, cineasta natural do Recife, não se deixa intimidar pelos tubarões, como se isso pudesse ser um sinal de subserviência. Clara entra no mar de peito aberto, com a cumplicidade de um nadador-salvador e todo o seu arsenal de salvamento. E quando ela começa a planear a sua vingança, a primeira coisa que se vê é Clara saindo da água, como se tivesse ido buscar forças entre os tubarões, ou conferenciado com eles. Em O Som Ao Redor (2012), a anterior ficção de Kleber, um velho patriarca que dá corpo ao coronelismo sai de casa à noite e percorre a distância até à praia, ignorando a placa de aviso sobre os tubarões e mergulhando no mar, como um acto regenerador. Nada no cinema de Kleber Mendonça Filho parece ostensivo, por isso ele não carrega no simbolismo dessas cenas. Mas como não achar que os tubarões são a metáfora perfeita dos conflitos sociais que o realizador expõe nos seus filmes?

Recife, velho centro da cultura dos engenhos de açúcar e, portanto, do sistema escravocrata brasileiro, distingue-se por um acentuado espírito de clã. “Existe uma cultura muito forte de aristocracia aqui”, resume Kleber Mendonça Filho, 48 anos. “Muitas famílias que não são nem particularmente ricas — e tem as ricas também — têm uma soberba de realeza que eu não vejo no Rio nem em São Paulo. Essa aristocracia termina dando prosseguimento a várias sensações estranhas, de conflitos, de raças e de classe. Alguma coisa aqui é mais original, mais intacto. Uma coisa que me fascina são as pessoas de esquerda, liberais, mas que na hora de falar com a empregada se comportam como ‘senhora de engenho’. É quando o sangue mostra os conflitos primitivos na sociedade.”

Como no cinema americano dos 70s

Aquarius é o filme brasileiro mais falado do último ano — e dos últimos anos. Ao contrário do anterior O Som Ao Redor, que se metastasiava em múltiplas personagens, é um retrato de mulher que, habitada pela actriz Sónia Braga é ao mesmo tempo serenidade e crispação, uma mistura de elegância com a obstinação de quem não faz cedências. Clara, assim se chama a mulher de 65 anos, crítica musical aposentada, viúva, mãe e avó, uma sobrevivente — descobre-se no início do filme — que nunca se vê ou se posiciona como vítima. Pelo contrário. Vive num apartamento com vista para a praia, com os seus vinis, as suas memórias e os seus fantasmas, a sua rede para cochilos, suspensa na janela. Não é um prédio que jogue sombra sobre a praia. É um edifício baixo e horizontal, uma antiguidade que sobreviveu à escalada imobiliária em toda a orla de Boa Viagem. Mas alguém quer o que é de Clara, e, não por acaso tem dentes de tubarão. Uma empreiteira local quer fazer com o edifício Aquarius o que o mercado imobiliário fez com o resto da orla: demolir e construir um condomínio de apartamentos para ricos.

O assédio a Clara é persistente e cresce em intimidação e tensão. Aquarius é filmado como se fosse um thriller. Há uma sugestão de ameaça, uma expectativa de que algo está para acontecer. Kleber assume que pensou no cinema de horror, mais concretamente em John Carpenter, que já era uma referência maior em O Som Ao Redor. Aí como agora, a ameaça de invasão e a ideia de cerco são evidentes. De resto, em Aquarius Clara não faz mais do que tentar defender o seu espaço de uma força que está a tentar entrar. “Um Forte Apache, com os índios do lado de fora”, resume o realizador. “Eu gosto muito do cinema americano dos anos 70. Eu tenho a ilusão, o prazer e a crença de que esse é o tipo de filme que poderia ter sido feito nos anos 70. Não só pela ética do filme, mas por uma forma de contar a história: o filme meio que leva seu tempo para contar a história.”

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O assédio a Clara/Sonia Braga é persistente e cresce em intimidação e tensão. Aquarius é filmado como se fosse um thriller. Há uma sugestão de ameaça, uma expectativa de que algo está para acontecer

Aquarius abre com uma sequência de fotografias a preto e branco de Boa Viagem, entre o final da década de 60 e o início dos anos 70, embaladas por uma música de recorte clássico, orquestral, de Taiguara, espécie de Paulo de Carvalho brasileiro. As fotografias mostram uma Boa Viagem expectante, com os primeiros sinais da verticalização que se viria a tornar desenfrada. A letra da música é magoada, fala das marcas do tempo e de juventude perdida

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“Basicamente há 40 anos, os governantes disseram: 'Boa sorte, achem um lugar e façam o que puderem’. Poderia ter existido um plano de urbanismo: sei lá, a cada quilómetro ter uma praça, para dar uma quebrada. Mas não. As preocupações e as decisões não vêm nunca em termos de bem-estar social ou o bem da comunidade”, diz Kleber sobre Boa Viagem. “É uma completa falta de pensar o futuro. E a gente está hoje no futuro. Andar em certas avenidas é como andar numa vala. Porque é prédio de 20, 30 andares de um lado e do outro.”

Kleber planeara filmar Aquarius num edifício dos anos 30 que foi parcialmente demolido em 2013. “Uma construtora já tinha comprado todos os apartamentos. Eu já tinha escrito cenas para essa sala aqui”, diz o realizador, mostrando fotografias do espaço no telemóvel. Um grupo de cidadãos, Kleber incluído, começou um movimento para classificar o edifício como património histórico e impedir que a demolição continuasse. “Aí eles deixaram. O prédio ficou dois anos parecendo como se fosse alguma coisa em Aleppo, na Síria. Até que eles foram lá e acabaram com tudo.” Sobrou o Edifício Oceania, a 150 metros. Aquarius foi rodado aí. “É sorte, porque é o último prédio de estilo reconhecível, que você reconhece como antigo. Numa faixa de dez quilómetros, ele é o último.” É também um dos últimos exemplos de um paradigma arquitectónico que não existe mais no Recife: a ligação directa com a rua. A partir dos anos 80, os prédios começaram a ficar vedados com muros altos ou grades que impedem o acesso directo a partir da rua. São verdadeiros bunkers, construídos pelo medo e pela paranóia securitária da classe privilegiada. “Você anda numa calçada com uma parede de quatro ou cinco metros de altura, absolutamente não é humano isso. É como se estivesse andando junto de uma penitenciária”, diz Kleber.

Carisma instantâneo

O realizador diz que sempre pensou que a personagem de Aquarius seria “burguesa”. “Ou seja, ela poderia ser cliente da construtora e não aquela mulher pobre, coitada, morando num edifício caindo aos pedaços. Para o modelo David e Golias não ficar tão pronunciado.” Parece completamente impossível imaginar Aquarius com outra presença e outro corpo que não Sonia Braga, mas Kleber diz que não escreveu o guião com a actriz em mente. O seu nome só surgiu mais tarde, num jantar, por sugestão de um dos directores de fotografia do filme. “Escrevi pensando em encontrar uma senhora incrível numa padaria ou num supermercado e perguntar a ela: ‘Você faria um filme?’ O que é uma ideia completamente estúpida”, ri-se o realizador. Kleber enviou o guião a Sonia Braga, que vive em Nova Iorque. A actriz não conhecia o cinema de Kleber, mas respondeu em menos 48 horas.

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Kleber enviou o guião a Sonia Braga, que vive em Nova Iorque. A actriz não conhecia o cinema de Kleber, mas respondeu em menos 48 horas Maarten de Boer/Getty Images

“Foi fulminante, ela quis fazer o filme imediatamente. E falava do roteiro como se tivesse visto o filme. Não foi só: ‘Acho que posso fazer isto, gostei do roteiro.’ Foi: ‘Eu sei fazer isso.’ É diferente.”

Perguntamos a Kleber o que é que Sonia Braga trouxe ao papel que não estava lá de partida. “Ela traz carisma instantâneo e absoluto. Isso você não tem como comprar em nenhum lugar, nem escrever num roteiro muito bem escrito.”

Clara, a personagem, é uma projecção da mãe de Kleber, uma historiadora que estudou a integração dos antigos escravos na sociedade brasileira. “Clara vem muito da minha mãe. Ela passou por um processo de câncer duas vezes, a primeira em 78 e o segundo ela não sobreviveu. Minha mãe faleceu há 20 anos, esse distanciamento me deu subsídios para eu escrever uma personagem de uma maneira quase mítica na sua certeza e na sua força. Essa personagem atraiu Sonia. Sonia quis juntar Sonia com essa personagem.”

E essa personagem, na sua sensualidade e altivez, activa memórias antigas de Sonia Braga no espectador. Também vemos Gabriela em Clara. 

“É uma honra muito grande filmar essa mulher como ela é, com 65 anos. Não é ela com 65 querendo parecer 45. Sonia é uma estrela de cinema: a maneira como se movimenta, o rosto, os olhos… E isso não faz muito parte da ideia de cinema contemporâneo. Os actores e actrizes são muito não-actores e não-actrizes, não-estrelas. Então acho muito bom que um filme de uma escala muito pequena, sobre coisas muito mundanas, filmado in loco, tenha uma estrela clássica do cinema.” Música, diz Kleber, é o que acontece “quando as notas se chocam, quando você coloca elementos diferentes”.

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