Encontros e despedidas

O ano de 2016 foi muito duro para as artes, com a morte de vários nomes de relevo.

Disse-se, embora com base empírica, que o ano de 2016 foi muito duro para as artes. Que neles se perdeu, fisicamente, muitos nomes de relevo. Na semana em que Portugal se despediu, com honras de Estado, de Mário Soares, um político por excelência (o maior do século XX português) que foi também dado às artes, podemos arriscar esse balanço. Não qualitativo, mas onomástico, seguindo uma arbitrária ordem alfabética que colocará nomes menores à frente de nomes maiores, mas é isso que faz a morte para lá da obra: iguala os seres.

Assim, no cinema, o mundo despediu-se de cineastas e actores. Correndo o risco de omissões, eis os primeiros: Abbas Kiarostami, Alberto Seixas Santos, Andrzej Wajda, Andrzej Zulawski, Ettore Scola, Garry Marshall,Guy Hamilton, Hector Babenco, Jacques Rivette, Michael Cimino, Noémia Delgado. No grupo dos actores (de cinema, mas também de teatro, revista e televisão) houve mais baixas: Alan Rickman, Alexis Arquette, Andrew Sachs, Anna Paula, Anton Yelchin, António Filipe, Bill Nunn, Bud Spencer, Camilo de Oliveira, Carlos Santos, Carrie Fisher, Chica Lopes, Debbie Reynolds, Domingos Montagner, Duda Ribeiro, Franco Citti, Francisco Nicholson, Gene Wilder, George Gaynes, George Kennedy, Jayalalithaa Jayaraman, José Boavida, Jorge Sequerra, Kenny Baker (o actor que dava vida ao robot R2-D2 de Star Wars), Madalena Sotto, Madeleine Lebeau, Manuel Bola, Maria Eugénia, Michèle Morgan, Nicolau Breyner, Peter Vaughan, Pierre Etaix. Ligados ao cinema, morreram também Douglas Slocombe e Vilmos Zsigmond, directores de fotografia; e Jean-Loup Passek, programador. Na arquitectura, partiram Diogo Seixas Lopes, Nuno Teotónio Pereira e Zaha Hadid. E nas artes plásticas, Portugal perdeu Ana Vieira, António Inverno, Darocha, Jaime Azinheira, José Rodrigues e Querubim Lapa.

Escritores, de diversas áreas, foram muitos: Alvin Toffler, Benoîte Groult, Dario Fo, Edward Albee, Elie Wiesel, Elizabeth Eisenstein, Ferreira Gullar, Harper Lee, Hermann Kant,Imre Kertész, Lars Gustafsson, Maria de Fátima Patriarca, Maria Isabel Barreno, Mário Braga, Michel Tournier, Myriam Fraga, Naum Alves de Sousa, Paulo Varela Gomes, Peter Shaffer e Umberto Eco. A Fotografia viu partir Bill Cunningham, Howard Bingham, João Ribeiro, Marc Riboud, Malick Sidibé e Pedro Cláudio; a BD e o cartoon perderam Marcel Gotlib e Maurice Sinet (Siné); a moda China Machado, Franca Sozzani e Sonia Rykiel; e no bailado dissemos adeus a Vera Varela Cid.

Na música, a lista é maior. Alan Vega, Billy Paul, Bobby Hutcherson, Bobby Vee, Carmen Silva, Cauby Peixoto, David Bowie, Esma Redžepova, Fernanda Peres, Frank Sinatra Jr., Gato Barbieri, George Martin, George Michael, Glenn Frey, Greg Lake, Keith Emerson, José Pracana, Leon Russell, Leonard Cohen, Matt Roberts, Maurice White, Mestre Azulão, Michel Delpech, Naná Vasconcelos, Nick Menza, Papa Wemba, Papete, Paul Bley, Paul Kantner, Pete Burns, Pierre Boulez, Prince, Sharon Jones, Signe Toly Anderson, Toots Thielemans e Vicente da Câmara. Ainda ligados à música, morreram o radialista Jaime Fernandes, o crítico Mauro Dias, o técnico de som Hugo Ribeiro, e Mário Moniz Pereira, que a par do desporto também escrevia letras para canções.

Voltando a Mário Soares. Apesar de pouco ligado à música, recordo uma noite em que assistiu a um concerto do brasileiro Paulinho da Viola no São Luiz. Foi em 1994 e chegou atrasado. O músico assinalou a sua entrada chamando-lhe “senhor ministro” (era Presidente, à época), mas corrigiu depois a gaffe. O que ouviria Soares, em seguida? Um samba (Argumento) que dizia assim: “A rapaziada está sentindo a falta/ de um cavaco/ de um pandeiro/ ou de um tamborim”. Um azar nunca vem só: nesse ano, Soares (Presidente) e Cavaco (primeiro-ministro) estavam no auge da discórdia. “A falta de um cavaco” era tudo o que Soares não queria ouvir. Mas se tivesse chegado uma hora antes, ficaria mais satisfeito. Porque ouviria Paulinho da Viola cantar (no que, sem ele saber, parecia uma involuntária invectiva a São Bento) “Aquele que não se engana/ viverá sempre enganado”...

Falando em Brasil: há uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, retomada por Maria Rita no seu disco de estreia, que se aplica, como poucas, à transição que medeia nascimento e morte. Chama-se Encontros e despedidas (o título desta crónica) e diz: “São só dois lados/ Da mesma viagem/ O trem que chega/ É o mesmo trem da partida.” É a vida, esse eterno mistério.

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