Fora de tempo

Ben Affleck atrás da câmara continua a ser mais interessante do que à frente dela.

<i>Viver na Noite</i>: um filme fora de tempo
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E se o “modelo de carreira” de Ben Affleck fosse Clint Eastwood? Tenham por favor um bocadinho de paciência enquanto explicamos a ideia de um actor que não vê as suas múltiplas carreiras (actor, argumentista, realizador) como separadas mas antes parte de um todo, e que ao longo das suas quatro realizações se instala a contra-corrente da lógica hollywoodiana predominante numa abordagem “classicista” de género (Viver na Noite sucede a Vista pela Última Vez… [2007], A Cidade [2010] e Argo [2012], todos policiais ou paredes-meias com as suas convenções). Claro que Affleck não é Eastwood, ainda lhe falta comer muito pão, e provavelmente isto somos nós que estamos a extrapolar. Mas, mesmo com o seu aroma inconfundível de aposta falhada, de filme com mais olhos que barriga, Viver na Noite é um filme tão desmedidamente fora de tempo que merece um respeitoso interesse.

História da ascensão de um pequeno mânfio irlandês de Boston a gangster de topo na Miami dos tempos da Lei Seca, esta nova adaptação de um romance do escritor Dennis Lehane (Mystic River) evoca ao mesmo tempo os grandes filmes de gangsters da Warner e procura um meio termo entre o Scarface versão De Palma e O Padrinho de Coppola. Mas se Affleck não é Eastwood, ainda menos é Coppola ou Scorsese; a quantidade de exposição relegada para a voz-off prova como Affleck não foi capaz de captar a essência da voz do romance, a quantidade de personagens que entram e saem sem justificar a sua presença é quase escandalosa (para lá de desaproveitar gente boa como Elle Fanning, Brendan Gleeson ou Zoe Saldana), e a sua presença à frente da câmara é um dos mais inexplicáveis exemplos de miscasting recente.

Espantosamente, nada disto afecta a capacidade de Affleck, muito bem ajudado pela equipa técnica (imagem de Robert Richardson, cenários de Jess Gonchor), criar o ambiente perfeito para a sua história – o melting pot de uma América de “segunda classe” que nunca ganhou o direito de se sentar à cabeceira da mesa. Porque esse é o verdadeiro tema de Viver na Noite, a vida de uma “pequena América” procurando um sonho que as fronteiras invisíveis de classe e identidade se encarregavam de matar à nascença. Affleck é realizador suficientemente inteligente para nos fazer entrever esse outro filme, mas não é suficientemente bom para lhe dar a primazia. Perdemos todos com isso, mas este é um fracasso mais interessante que muitos sucessos.

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