Uma tarde para dizer adeus à Cornucópia, ou talvez não

Naquela que foi anunciada como a última sessão do Teatro da Cornucópia, o Presidente da República e o ministro da Cultura parecem ter reaberto uma janela de negociações. Estatuto de excepção para a companhia é a condição do seu fundador.

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Nuno Ferreira Santos
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Uma possível reviravolta na história e uma nova personagem – o fim do Teatro da Cornucópia, apesar de quase inevitável, parece ter-se tornado em parte condicional; um governante entrou em cena para abrir uma sessão de mediação inesperada em pleno palco. Este sábado, uma hora antes do início do que seria o último espectáculo da Cornucópia, o palco foi do Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa esteve no primeiro espectáculo da companhia, em 1973, O Misantropo, e não ficou para o espectáculo do fim porque veio para o tentar evitar. “Isto não é irreversível, pois não?”, perguntou. No final desta espécie de ensaio geral de esclarecimentos, com os actores principais dos bastidores, o futuro da Cornucópia pareceu ficar dependente da consagração de um estatuto especial para a companhia.

Pouco depois das 15h, Marcelo Rebelo de Sousa sentava-se no cenário com o ministro da Cultura e com os directores da companhia para mudar o sentido da maré, depois de conversas prévias com o ministro da Cultura e Cristina Reis e Luis Miguel Cintra, directores da histórica e quase extinta Cornucópia. “Já passou”, dizia o Presidente no final, com Luis Miguel Cintra a constatar que “a situação continua exactamente na mesma”, a co-directora Cristina Reis a falar no “primeiro dia do resto da nossa vida” e o ministro a frisar sempre que “as negociações nunca pararam”. “Temos de falar”, repetiu à cenógrafa Cristina Reis.

Uma espécie de paternidade artística

A mão no pulso de quem o Presidente queria convencer a contemporizar, um púlpito para político ver e aviões de brincar no chão a compor o cenário pontuaram quase uma hora de conversa de Marcelo Rebelo de Sousa com Cristina Reis, depois também com Luis Miguel Cintra e, por fim, com o ministro Luís Filipe Castro Mendes, que cancelou uma viagem com o primeiro-ministro a Castelo Branco para “um acto de cultura”, como descreveu o Presidente. Lá fora, mesmo antes das 15h, hora prevista para o início da distribuição dos bilhetes para a última sessão, já cerca de 40 pessoas faziam fila à porta do Teatro do Bairro Alto. Rapidamente passou a ouvir-se o burburinho de centenas, entre as que encheriam a sala com cerca de meia hora de atraso em relação ao programa e as outras tantas que ficaram no átrio, à espera do final da récita. Algumas estarão entre as 522 que ao início da noite de sábado já tinha subscrito a petição O Teatro da Cornucópia é Património Nacional: Não Pode Acabar, que apela ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, ao ministro da Cultura e aos deputados da Assembleia da República para que seja encontrada uma alternativa ao fim da companhia.

Estatuto de excepção?

No interior da sala, os olhares expectantes dos actores que iam participar na récita de textos de Guillaume Apollinaire que poderá ser o derradeiro espectáculo da companhia eram temperados com os sorrisos que normalmente rodeiam Marcelo Rebelo de Sousa. "Podemos dizer que a Cornucópia não vai acabar?", perguntou um jornalista da roda densa que se acumulava aos pés do grupo de governantes e dirigentes da Cornucópia; “de modo nenhum”, franziu as sobrancelhas Luis Miguel Cintra. Aos jornalistas diria um pouco mais tarde: “Acabamos como temos de acabar se a situação não se alterar." Está cansado, diz, de repetir o mesmo pedido. A Cornucópia, reconhecida como uma das principais referências do teatro português contemporâneo, gostaria de ter um estatuto de excepção que a isentasse de, todos os anos, prestar provas nos concursos de apoios à criação da Direcção-Geral das Artes.

Em 2015, recordou Luís Miguel Cintra, foi endereçado um pedido nesse sentido ao anterior secretário de Estado da Cultura. "Isso caiu em saco roto. Vou agora fazer a outro ministro a mesma sugestão?”, exasperou-se, voltando a traçar um cenário que há muito, em entrevistas e intervenções públicas, deixava adivinhar e ameaçava. “Já passou muito tempo. Já não temos coragem para recomeçar."

“Não sou eu que tenho de voltar atrás, quem tem de voltar atrás são as decisões” sobre o modelo de apoios do Estado, prosseguiu. “Com o dinheiro que recebemos há três anos [309,6 mil euros por ano], não é possível” continuar a trabalhar; “pode ser que a economia actual não permita outra coisa”, lamentou. Passou o sentimento de urgência para o outro campo. “Quem pode ficar aflito é o público e o Estado."

A vinda do Presidente e do ministro foi uma honra, ressalvou, enquanto esclarecia: “Não estou a fazer chantagem, não é uma forma de pressão sobre o ministério." Marcelo Rebelo de Sousa já tinha saído, sem assistir à récita, e o ministro encontrava o seu lugar na primeira fila, perto de Edite Estrela, com rostos como o de Rita Blanco na plateia. A pequena sala do Teatro do Bairro Alto, ao Príncipe Real lisboeta, iria encher-se de muitos espectadores, muitos anónimos, alguns actores e jornalistas. Mas para já estava ainda calma. O burburinho permanecia lá fora, onde alguns foram desmobilizando, mas umas boas dezenas, entre as quais o actor Miguel Guilherme, dispuseram-se a aguardar até ao final da récita. A realizadora e deputada socialista Inês de Medeiros, a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa Catarina Vaz Pinto, as actrizes Beatriz Batarda e Carla Bolito também estiveram presentes.

O ministro esteve no Teatro do Bairro Alto, reiterou ao Presidente da República e aos responsáveis pelo companhia, para “confirmar publicamente" que Ministério da Cultura e Teatro da Cornucópia "continuam em negociação, em conversações”. Em 2017 tinha previsto para a Cornucópia um reforço das verbas – mas a aplicar na inventariação e na classificação do seu património móvel –, além da renda de seis mil euros mensais já garantida por mais um ano pela tutela. Neste momento, diria depois Luís Miguel Cintra aos jornalistas, a Cornucópia “não tem dívidas”. Mas se continuasse em actividade, iria ter. Apesar das negociações em curso, o facto de o representante do governo não se comprometer com a mudança de estatuto da Cornucópia não “soluciona o problema: a companhia não tem "dinheiro para pagar” a quem faz as peças.

O ministro da Cultura disse várias vezes que a forma como a tutela olha para a Cornucópia é especial. “A vossa estrutura é especial, já têm um estatuto especial”, foi dizendo com ou sem Marcelo Rebelo de Sousa ao lado, descrevendo depois ao PÚBLICO que “o tratamento da Cornucópia foi sempre excepcional”. Uma medida como a isenção de candidatura aos concursos de apoio às artes, dado o seu valor provado, depende “da revisão da legislação” que está em curso, frisou; “até lá, tem de se aplicar a lei anterior". "As conversações nunca foram interrompidas e de repente acontece este anúncio – à partida, a Cornucópia disse que queria encerrar, agora a Cornucópia diz que não quer encerrar, mas as negociações nunca pararam”, relatou o ministro ao PÚBLICO.

A revisão da lei dos apoios prevê ou não essa possibilidade estatutária para a companhia fundada em 1973 por Cintra e Jorge Silva Melo?, voltou a perguntar o PÚBLICO ao ministro, depois de ontem ter colocado a mesma pergunta ao secretário de Estado Miguel Honrado, que tem a área do teatro à sua responsabilidade. “Criar uma excepção em termos legislativos é um passo, e é esse passo que se está a discutir. Não estou a dizer nem que não, nem que sim, estou a dizer que se está a discutir."

Trabalhar até morrer

Mas só alguns testemunharam estas conversações de bastidores. Centenas de espectadores, sexagenários e jovens, personalidades da cultura ou anónimos, vieram passar a tarde à Cornucópia para ver um recital de textos e uma peça de Apollinaire. Alguns, como os actores Dinarte Branco e Nuno Lopes, nomes lançados e formados neste Teatro do Bairro Alto, ficaram até à abertura de portas no final da peça para ouvir Luísa Cruz ler um texto de Glícinia Quartin sobre a sua experiência na companhia que subscrevem. Sorridente e emocionada, descreveu a Cornucópia como “um teatro que se respeita porque as pessoas se respeitavam”. O termo essencial da vida e da sobrevivência da companhia surge novamente. “A Cornucópia é um caso excepcional." Palmas, longas, solenes, algumas lágrimas em cima do palco e fora dele.

Dinarte Branco e Nuno Lopes estão de acordo sobre quão excepcional é a companhia onde aprenderam tanto. Momentos depois da ovação em pé ao agradecimento da “cumplicidade” dos actores, dos músicos, de gente do cinema como Manoel de Oliveira ou Paulo Rocha, dos técnicos, do público, dos detractores, disseram esperar que não seja mesmo o último espectáculo, mas não acreditam realmente na possibilidade de uma salvação in extremis da Cornucópia. Ali trabalharam com “liberdade”, diz Dinarte Branco, que vê o envolvimento “tardio” de políticos como um “aproveitamento”.

Classificam a Cornucópia, outra vez, como excepcional, mas não acreditam que esse estatuto lhe seja reconhecido. No átrio, as pessoas falam e comem bolinhos, no interior da sala Luis Miguel Cintra nunca está sozinho sob a luz baixa de cena, mas está cada vez mais rodeado de menos gente. Alguma calma, abraços íntimos. “Respeito profundamente a Cristina e o Luís Miguel Cintra” pela decisão, diz Dinarte Branco, e também a “muita coragem de não se sujeitarem às regras” de que discordam, completa Nuno Lopes. Não acreditam que o mentor grisalho da companhia pare de trabalhar – “não será nesta casa e com esta estrutura, espero vê-lo acarinhado por outras estruturas”, adivinha Branco.

Ele próprio, ladeado por Cristina Reis e enquadrado por mais de duas dezenas de actores, entre os quais Rita Loureiro ou Márcia Breia, deixou isso no ar, em palco. “Oxalá a gente possa continuar a trabalhar, provavelmente noutro tipo de estrutura, até morrer.”

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