Tempos modernos, pesadelos antigos

Nos seus 80 anos, o filme de Chaplin é muito mais moderno do que as idiotices pretensamente avançadas do 5 Estrelas.

Uma boa notícia, neste Natal: o filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, vai ser reposto em sala, em cópia restaurada, no dia 15 de Dezembro, neste ano em que se assinala o 80.º aniversário da sua estreia (é no Cinema Ideal). O que tem isso a ver com a actualidade? Tem muito. Desde logo, 1936. Quando o filme estreou, o mundo estava numa irrazoável balbúrdia. Na sua feroz ironia, Chaplin não poupou ninguém (dos patrões da indústria aos déspotas mais em voga) e, por isso, o filme foi criticado nas democracias e banido nas ditaduras. Sobreviveu até hoje, pela sua humanidade.

Pois neste mesmo momento, estando a Itália a braços com nova crise política (mais uma), por ela esbracejando a Europa em novas convulsões, reemergem salvadores de pacotilha na falência da chamada política tradicional. E é de Itália que volta a espreitar o 5 Estrelas de Beppe Grillo, clown feito político por força de uma "ideia". E que ideia é essa? Um simples populismo? Ou algo mais refinado?

Vejamos. O ideólogo do 5 estrelas foi um empresário e político milanês chamado Gianroberto Casaleggio, que morreu em Abril de 2016 com um tumor no cérebro. Há dois vídeos, por ele publicados (estão ainda no Youtube), que sintetizam a sua visão do mundo, presente e futuro: Prometheus, La Rivoluzione Dei Media (2007) e Il Nuovo Ordine Mondiale Gaia (2008). O que temos no primeiro? O elogio das "delícias" da internet. A queda dos media tradicionais (TV e jornais já não existiriam em 2015, previa ele), a ascensão dos blogues, canais de notícias gratuitos, escritos por milhares de jornalistas para milhões de leitores, unificação de tudo na net, imagens no Flickr, vídeos no Youtube, tudo gratuito, nada de direitos de autor ou de cobranças pelo que quer que seja. Em lugar de produtores e consumidores, haveria um híbrido de ambos: o "prosumidor". Mas a evolução era concentracionária: a Google comprava a Microsoft, a Amazon comprava a Yahoo, nasciam empresas de realidade virtual como o Prometeus, a Place e a Spirit, em 2050 o Prometeus comprava a Place e a Spirit e tornava-se o único e mundial dono do maior mercado do planeta: o da vida virtual. Assim: "Podemos andar em Marte, ir à batalha de Waterloo ou ao SuperBowl, pessoalmente. É real." Isto era o que "oferecia" Casaleggio.

Mas em Gaia ia mais longe. Depois de uma revisão apressada e primaríssima da história mundial, previa para 2018 a divisão do mundo em duas grandes áreas (democracia e ditadura), seguida de uma Terceira Guerra Mundial que duraria de 2020 a 2040. Nesta, seriam destruídos os "símbolos do Ocidente" (sic) como a Praça de São Pedro, a Notre Dame de Reims ou a Sagrada Família. Mil milhões de pessoas morreriam. O petróleo chegaria ao fim. O mar subiria 12 metros. Em 2043 "um movimento ambientalista" emergiria "em todo o mundo para gerir os problemas locais como a energia, alimentação, ambiente e saúde". Em 2047  toda a gente teria a sua identidade numa rede social mundial criada pelo Google com o nome Earthlink. Quem não estivesse lá, não existiria. Em 2050, uma inteligência social colectiva chamada Brain Trust passaria a resolver os problemas complicados a toda a gente, partilhando todo o tipo de informações e dados online. Em 2054 era eleito, via net, um governo mundial: Gaia. Sem partidos, ideologias, religiões, o homem seria o único dono do seu próprio destino e a consciência colectiva seria a nova política. Bonito? Nem por isso. A centralização, o governo único, as informações mundiais nas mãos de um só detentor, são apenas novas vestes para pesadelos antigos. Uma palavra (virtual) esconde a outra (ditadura). Já demos, todos e muito, para tais peditórios. Ao diabo com as unificações, viva a diversidade!

Voltando ao início. O filme de Chaplin, nos seus 80 anos, é muito mais moderno do que estas idiotices pretensamente avançadas. Vê-lo é um sopro de humanidade e ajuda a afastar os sempre muito solícitos salvadores que, a coberto de riscas, estrelas ou bolinhas se apressam a vir colocar nos humanos em crise os seus sempre tão prestimosos coletes-de-forças. Se, ao vê-lo, não saírem do cinema de alma lavada é porque já estarão demasiado "virtuais" para sentir a vida.

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