Vá-vá é mais um histórico de Lisboa “à espera que alguém lhe pegue”

O que é isso de investir no futuro de um restaurante e café histórico? Casa do Cinema Novo Português e um dos locais onde a boémia era parceira da cultura e da oposição ao Estado Novo, o Vá-vá vive tempos incertos.

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O cineasta Lauro António no interior do Vá-vá Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

"Oh doutor, há propostas, mas esbarram sempre com a renda. Estou a fazer os possíveis, mas aparecer alguém que queira remodelar isto e fazer alguma coisa? Não vai ser fácil." É o cineasta Lauro António, assíduo no café lisboeta Vá-vá, que está nesta pele de “doutor” à conversa sobre as dificuldades de manter o espaço com um dos sócios, Fernando Eusébio.

Há uma perspectiva de compra da quota dos quatro sócios, mas nada de concreto. Quem vai dar um "balúrdio" para fazer renascer este espaço? A casa só é sustentável “pela boa vontade de alguns sócios”, confessa Fernando.

Primeiro foi a crise económica e o aumento do IVA na restauração, que entretanto voltou à taxa intermédia. Seguiu-se a Lei do Arrendamento Urbano, “a maldita” de que João Pereira e Fernando falam. Sócios do Vá-vá há 32 anos não desvendam um fim categórico do histórico café e restaurante da Avenida dos Estados Unidos da América, no cruzamento com a de Roma, mas há muito que as coisas se arrastam.

Sem certezas sobre se mensalidade se vai manter, não arriscam investir na renovação de um café que parece parado nos anos 80. “Nós investimos, eles aumentam a venda e temos que fechar em simultâneo”, é um cenário muito provável para João Pereira. Umas últimas obras ficaram por 125 mil euros. Fernando e João não querem mais andar nessa incerteza, mas uma coisa é certa: "não há possibilidade de inovação desta forma”. Um cenário de compra do Vá-vá está fora de cena para os sócios, porque o prédio é detido por uma companhia de seguros, que não vende o espaço.

Ainda que o fenómeno seja nacional, para Lauro António, a Avenida de Roma “é uma síntese impressionante” deste encarecimento das rendas. "Tudo aqui ficou mais caro, desde as casas das avenidas principais aos bairros sociais. Tudo o que eram lojas de bairro, sapatarias, pequenas retrosarias, desapareceu". Cafés e restaurantes também, ao serem substituídos pelos franchisings de multinacionais. A Sul Americana, de 1950, é hoje um Burger King. A Suprema, já em plena avenida, também desapareceu.

Para salvaguardar a mensalidade que têm, Fernando e João esperam o protocolo do governo que permita alargar o regime transitório da lei das rendas ao comércio histórico, para que possam ficar à margem de grandes aumentos até 2027. A entrada em vigor deste diploma é uma “urgência” para estes proprietários na sequência da Lei do Arrendamento Urbano, que deixou muitos espaços emblemáticos incapazes de responder ao aumento pedido pelos proprietários ou reagir perante um despejo.

Fernando e João têm a papelada para convencer o governo de que o Vá-vá merece ser classificado como loja histórica. Designação que não lhe foi atribuída pela Câmara de Lisboa no âmbito do programa Lojas com História que visa proteger e apoiar, para já, 63 casas emblemáticas.

A João nada lhe garante que de um dia para o outro não possa abrir a porta. Fernando é mais optimista: “Com mais dificuldades e tal, mas o Vá-vá não fecha”. A verdade é que, desde 2007, quando o PÚBLICO passou para ver “o que torna este café tão especial”, há frases que pouco se alteraram. “É preciso investir no futuro”, repete Fernando. O que é isso de investir no futuro do Vá-vá?

“O espaço está velho, precisa de um conceito novo”. Na hotelaria há 50 anos, João já viu isto acontecer muitas vezes, mas nunca lhe tinham faltado recursos para acompanhar o progresso. Acha que “tem de haver uma atracção”, o que defaz os argumentos do sócio de que o problema é o desaparecimento dos antigos clientes.

O Vá-vá vive hoje com os clientes de sempre: principalmente depois do almoço, vive a meio gás, a meia-idade. A sala grande de jantar não abre há dois meses, a oferta é a mesma há vários anos. “Imaginação” é o que falta, acredita Lauro António. E “malta que não esteja cansada”. Alterações na decoração, mais variedade na cozinha. Trazer gente nova, para entrar num novo ciclo: “Malta nova atrai mais malta nova para ver a malta nova que cá está”, como nos anos 60.

Os anos da boémia e da oposição

"O Vá-vá não era parecido com isto. Tinha muito a ver com os cafés parisienses, com os bares londrinos. Tinha uma atmosfera intimista", descreve o cineasta de 74 anos. Não existia a parede que separa a sala de jantar do snack-bar. Havia, em vez, um balcão corrido que dava a volta ao centro do café. Sofás de couro castanho a ladear as paredes. Ambiente à média luz, baixa. Garrafas nas prateleiras onde hoje estão as chicletes, tabaco e raspadinhas.

Um café que, nos tempos da sua própria juventude, fechava "às duas ou três da manhã", sem grandes pressas. Dando aso a longas tertúlias sobre a política e a cultura que se queria “nova” na época. A vida boémia dos artistas da Avenida de Roma dos anos 60 e 70 também passava por ali. Agora, talvez tenha ganho cabelos brancos. Fecha pelas 21h30 ou 22h.

Lauro António tinha-se acabado de mudar para Lisboa, pela segunda vez, e o Vá-vá abria portas. 1958, era moço, com 15 anos. Quando andava na faculdade, o café tornou-se-lhe uma segunda casa. Para almoçar, jantar, falar de cinema, discutir política. Até fazer um filme ("Paisagem sem Barcos", de 1983, foi em grande parte gravado ali). Era o seu café - também "O Café" sobre o qual escreveu Ary dos Santos e Fernando Tordo cantou.

O café dos irmãos Petrónio e Gonzaga vive, nessa altura, o fervor dos que “faziam a revolução todos os dias”, alimentados pela esperança da candidatura de Humberto Delgado, precisamente em 58. Os edifícios modernos, longe da arquitectura tradicional do Estado Novo, rompem também o ambiente, que se liberta nas laterias da Avenida de Roma. Há uma aura estética que atrai os novos habitantes de Lisboa, com “profissões novas” (publicitários, “tipos do cinema, da música e da moda"), gente que se dava à discussão e ao pensamento crítico.

Andavam muito pelo Vá-vá esses "grupos do reviralho". Manuel Guimarães, pintor e cineasta, Clarisse Guimarães e Manuel de Azevedo, jornalista e crítico de cinema do Diário de Lisboa. Também local de encontro dos “baladeiros” das canções de protesto, de Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Carlos Mendes e Luís Villas-Boas. E artistas plásticos dos atelieres dos Coruchéus como João Vieira, Eurico Gonçalves, Gracinda Candeias e Manuela Pinheiro, que hoje ainda tem um quadro nas paredes do café.

Chamados pela presença deles vinham outros tantos.

Havia um outro grupo de trabalhadores da TAP, hoje nas casas dos 60 ou 70, que ainda têm mesa reservada à hora de almoço no fundo da sala.

E há um grupo que faz o Vá-vá carregar um legado maior. “Foi aqui nestas mesas que se criaram ideias” do Cinema Novo Português de Fernando Lopes, António Pedro Vasconcelos, Paulo Rocha, Seixas Santos, Cesar Monteiro e Lauro António, que tinha ali “a sua pátria”.

“Sempre vinha muita malta da universidade”, desde os anos 60 – onde o ano quente de 1961 irrompeu pelo Vá-vá em enormes reuniões de estudantes – à década de 80 que trouxe a droga para dentro do café. Na mesma altura em que as paredes dividiram a sala, surgiram as mesas e cadeiras de madeira, as cortinas e toalhas pesadas. Mudanças que vieram “destruir uma espécie de templo da cultura”, sente Lauro. As pessoas já vinham menos.

Foi em 1985 que Fernando e João ficaram com um café que veria “graves confrontos e alguns dias de tensão” por causa do consumo de droga. Passaram a fechar à meia-noite. Não por culpa única das drogas nem da mudança do espaço. Depois de 1974, aqueles que faziam a oposição de café, passam a fazer elas próprias parte da acção política. Para trás fica a vida de tertúlia e a rotina do Vá-vá.

Depois dos anos 80, a arte não abalou. Estavam lá os Xutos e Pontapés e os que os seguiam. Rodrigo Leão, crescido nos arredores da Avenida de Roma, recordava em entrevista ao PÚBLICO a atmosfera artística que o rodeava. Como tinha uma sala de ensaios num terraço na esquina da Avenida dos EUA com Roma, ouviam os Sétima Legião todos aqueles que estavam no Vá-Vá.

Hoje ainda muitos vêm em “romagem de saudade”. Duas irmãs fazem as palavras cruzadas, uma senhora com os seus 70 anos lê na esplanada encostada à coluna, onde no dia anterior fazia o mesmo um senhor de idade semelhante. Há um senhor, o mais velho dos clientes, que percorre o jornal com uma lupa. Mas a geração de Lauro António pouco se renovou no Vá-vá.

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