Onde fica a casa dos nossos amigos?

O Doclisboa ronda a questão dos refugiados e do exílio com uma série de filmes que escolhem outros e menos óbvios ângulos: e Wang Bing, Avi Mograbi, Pippo Delbono.

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Ta’ang, de Wang Bing: o nomadismo forçado da etnia Ta’ang de Myanmar
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Between Fences, de Avi Mograbi: no centro de detenção de Holot, junto de um grupo de refugiados da Eritreia que solicitaram asilo a Israel
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Vangelo, de Pippo Delbono: sobre a viabilidade de encenar o Evangelho com refugiados sem experiência teatral
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300 Miles, de Orwa al Mokdad: o título refere-se à distância que separa duas cidades da martirizada Síria, Aleppo a norte e Daraa a sul, bem como a própria família al Mokdad
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Ismyrne, de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige: Esmirna é a cidade do mar Egeu onde a família da poetisa libanesa Etel Adnan cresceu, já não existe na Izmir da Turquia contemporânea
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O cinema documental ou de não-ficção teve sempre como uma das suas vocações dar voz a quem não a tem, contar as histórias daqueles que não as costumam poder contar. É, por isso, inevitável que a crise dos refugiados que sacode a Europa nos últimos anos interesse os cineastas do real, de um género que sempre ergueu o estandarte do testemunho e nunca enjeitou a sua vocação de “caixa de ressonância” do mundo que nos rodeia. Dito isto, é no entanto curioso reparar como essa vocação de testemunho adopta uma nova forma nos filmes que o Doclisboa mostra este ano à volta do tema dos refugiados, como se os seus autores tivessem procurado outras maneiras de contar estas histórias de formas que permitam transcender a avalanche de imagens televisivas a que somos quotidianamente expostos sobre o assunto, recentrar a questão na dimensão humana da crise. Mais abertamente, encontramos neles uma espécie de “deriva” que reflecte ora o limbo apátrida em que muitos refugiados se encontram, ora a busca de um lugar a que se possa chamar “casa”.

Talvez nenhum o faça melhor que Ta’ang (Da Terra à Lua; Culturgest, segunda 24 às 16h; São Jorge, domingo 30 às 19h15). Nele, o veterano chinês Wang Bing (por três vezes vencedor do Doc e este ano fora de concurso) concentra-se no nomadismo forçado da etnia Ta’ang de Myanmar, em constante vai-e-vem na fronteira entre a antiga Birmânia e a província chinesa do Yunnan. As famílias que Wang acompanha pacientemente não vêm da Síria, do Afeganistão ou do Iraque, mas são igualmente refugiados que procuram sobreviver como podem, fugindo a um combate numa zona a que o Ocidente pouco liga. É um filme de esperança e resistência, que revitaliza o cinema atento de Wang e propõe a ideia de “casa” como comunidade, como família, independentemente do lugar físico onde se encontra.

O actor e encenador italiano Pippo Delbono e o cineasta israelita Avi Mograbi “instalam-se”, e às suas câmaras, em casas que funcionam como limbos temporários, centros de detenção ou de acolhimento de refugiados. Between Fences (Da Terra à Lua; Culturgest, 4ª 26 às 21h30 e sexta 28 às 10h30) é o registo de um trabalho de workshops teatrais realizado por Mograbi com o encenador Chen Alon no centro de detenção de Holot, junto de um grupo de refugiados da Eritreia que solicitaram asilo a Israel e dão por si prisioneiros de um limbo transfronteiriço e inexistente, apanhados nas malhas kafkianas de uma legislação que não reconhece o estatuto de refugiado. Delbono, por seu lado, pergunta-se em Vangelo (Competição Internacional; Culturgest, sexta 21 as 21h e São Jorge, domingo 23 às 16h30) sobre a viabilidade de encenar o Evangelho com refugiados sem experiência teatral, como modo de tornar mais presente e mais inescapável a humanidade e a compaixão da mensagem cristã.

Filmes diferentes mas de algum modo gémeos, nem Between Fences nem Vangelo resolvem as questões éticas que os animam e lhes subjazem – preferem até não o fazer e deixá-las em aberto, expondo um tabuleiro de questionamento simultaneamente activista e artístico. Mograbi prossegue aqui a sua investigação das contradições de um estado judeu que parece negar ao “outro” aquilo que desde o princípio motivou a sua existência; Delbono continua uma pesquisa artística impulsionada pelas suas experiências pessoais. As casas que filmam, contudo, são meros limbos provisórios, estações de passagem.

A experiência do exílio surge de modo mais directo em 300 Miles (Competição Internacional; Culturgest, domingo 23 às 21h30 e quarta 26 às 10h30) do sírio Orwa al Mokdad. O título refere-se à distância que separa duas cidades da martirizada Síria, Aleppo a norte e Daraa a sul, bem como a própria família al Mokdad - o realizador acompanha os combates em Aleppo, a restante família ficou em Daraa, com o irmão Firas e a sobrinha Noor à câmara. 300 Miles é uma crónica do quotidiano do “exílio interno” na primeira pessoa, onde a casa que se conhece já deixou de o ser; mas o filme é desequilibrado, algo vão, como se existisse para justificar o dispositivo ou o título mais do que por ter algo a dizer, sobretudo depois do que a conterrânea Liwaa Yazji fez com um outro magnífico filme em viagem e fuga, Haunted.

Valerá, por isso, terminar este percurso em Ismyrne (Competição Internacional; São Jorge, sábado 22 às 22h e Culturgest, terça 25 às 10h30), onde a dupla libanesa formada por Joana Hadjithomas e Khalil Joreige mergulha a fundo na ideia de casa primordial, de lar perdido. Esmirna, a cidade do mar Egeu onde a família da poetisa libanesa Etel Adnan cresceu, já não existe na Izmir da Turquia contemporânea. Essa Esmirna das memórias e das fotografias é uma espécie de Rosebud perdido que este filme de 50 minutos, parte de uma exposição multimedia estreada no museu parisiense Jeu de Paume, procura, antes de conceder que nunca o conseguirá reencontrar. Os Adnans, fugidos à pressa depois da queda do império otomano, nunca perderam o norte dessa Esmirna paradisíaca, mas é preciso os anos passarem para a dar finalmente como perdida. Como quem diz que não se pode de facto voltar a casa, onde quer que ela seja.

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