Laurent Cantet depois da revolução

Não é realizador de “um só filme” mas desde A Turma que não encontra uma casa que seja sua.

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Todas as personagens revelam-se como exiladas, afastadas das suas ilusões

Laurent Cantet não é realizador de “um só filme”. Antes de A Turma (2008), Palma de Ouro de Cannes, houve Recursos Humanos (1999, magnífico melodrama proletário que colocava em confronto um pai e um filho, heranças de classe assumidas e traídas com fábrica em fundo) e em 2001 O Emprego do Tempo, que experimentava andar pela névoa de uma personagem que, por pânico de entrar no mundo do trabalho, anulava a sua existência – era um movimento temerário, esse, habitar a invisibilidade. Depois houve a Palma, com o filme sobre a escola como empenho individual e conflito social, sobre a sala de aula como jogo – e de novo o fazer corpo com as personagens, professor e alunos, concretizando um trabalho de grupo: o cinema.

A ausência de efeitos de assinatura – os três filmes tentam formas diferentes, embora se possa dizer que neles há sempre indivíduos com solidões e crenças em dificuldades, desafiadas pela dinâmica dos grupos - foi mesmo celebrada como o triunfo do artesanato sobre o “cinema de autor” de marca registada. A Turma foi um momento apoteótico desse labor classificado de “democrático”, visto que Cantet não abusava da sua posição dominante, jogava ao lado dos outros jogadores - para além de ter sido um momento de euforia francesa em Cannes 2008: era a primeira Palma de Ouro para um filme francês depois de Sob o Sol de Satanás, de Maurice Pialat (1987).

Depoi, foi a maldição da Palma...

Laurent Cantet não é realizador de “um só filme” mas o que tem acontecido desde A Turma - um episódio para o filme colectivo 7 Dias em Havana (2012), Foxfire - Raposas de Fogo (2012) e, esta semana nas salas portuguesas, Regresso a Ítaca – parece uma sucessão de tentativas, uma deriva, que já vimos ser elogiada (porque supostamente reitera uma recusa em se fixar), mas que na verdade não encontra uma casa para fazer sua. Mesmo que seja, depois de 7 Dias em Havana, um regresso a Cuba.

Num terraço que domina a capital cubana, um grupo de amigos encontra-se ao crepúsculo festejando-se o regresso de um deles de um exílio espanhol. Na verdade, e como começa a ser imediatamente óbvio no argumento escrito por Cantet e pelo escritor Leonardo Padura, todas as personagens revelam-se como exiladas, afastadas das suas ilusões, à medida que a noite vai dando lugar ao dia e as contas vão sendo ajustadas. Cá estão de novo as negociações individuais à procura de um lugar no grupo. Havana está lá em baixo. É suposto este terraço vibrar como a sala de aula de A Turma? Isso não acontece. O filme não se faz no meio do jogo nem com o jogo. O filme regista o “número” de cada personagem, que vem lá de baixo, onde talvez fosse sempre uma realidade em construção, para se anunciar cá em cima como súmula pronta a debitar e a ser consumida – é desconcertante o dispositivo engendrado por Cantet/Padura, parece ir direitinho, sem desvios, à concretização de clichés, como aquele de ir anunciando a revelação final de um segredo que ajudará a pacificar as dúvidas que a noite instalou no terraço.

Uma das personagens, Eddy, é interpretada por Jorge Perugorria, actor de Morango e Chocolate (1993), de Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabio. Passamos Regresso a Ítaca a ouvir ecos, a lembrar-nos de Alea, desse filme, que foi um sucesso internacional no início dos anos 90, e daquela que é a sua obra-prima, Memórias do Subdesenvolvimento (1968): cinema sobre personagens em dificuldades com o colectivo, personagens agarradas a um cenário que vibra com a sua decomposição (“Deve ser dos trópicos. Aqui tudo apodrece ou morre rapidamente”, diz-se em Memórias do Subdesenvolvimento), cinema sobre a desilusão e a dissidência que, de forma febril e melancólica (é fabuloso Memórias do Subdesenvolvimento, novamente), fez vivamente a sua revolução.

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