Da Ucrânia para Sines, um cabaret para pôr o mundo em delírio

Arrancaram os concertos do FMM no Castelo de Sines e na quarta-feira tivemos a melhor das surpresas com as Dakh Daughters: um esfuziante cabaret-punk ucraniano que ficará para a história do festival.

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As Dakh Daughters Mário Pires
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As Dakh Daughters Mário Pires

Algo de muito singular e extraordinário deverá andar a passar-se no interior do Teatro Dakh, em Kiev. Três anos após termos despertado em Sines para a maravilhosa folk de fancaria do colectivo DakhaBrakha (um punhado de músicas distintas, tanto com marca local ucraniana quanto assumidamente surripiadas de outras partes do mundo, tudo processado na criação de uma falsa tradição), mesmo o espanto de então não faria prever que a grande actuação dos primeiros dois dias longos do Festival Músicas do Mundo, já instalado no Castelo de Sines, chegaria pela mão de um espectáculo de cabaret em modo punk.

São seis as Dakh Daughters (habitualmente sete, mas faltou Nina Harenetska, dos DakhaBrakha) e passam pelo palco como se o musical da Broadway Chicago tivesse sido criado na Ucrânia sob a direcção de Nina Hagen. São histórias que se sucedem com a voz principal a saltitar por todas, entregues a uma muito teatral narração de histórias populares ou pilhadas de Shakespeare, Bukowski e outros tantos, que pelos ecrãs (com tradução) ficamos a saber versarem coisas tão fundamentais na vida quanto: gostar de escutar Chopin no meio de uma sala branca, concentrar no cabelo de alguém toda uma manifestação de amor, fazer jorrar sangue da mulher amada para vingar o adultério que se cheira na sua pele e nas suas roupas (ler como episódio grotesco), observar que numa família em que todos tombam prostrados pela doença “só o Ivan, que tem hérnia, é que está bem” ou tecer loas ao belo mar Negro da Crimeia.

Apelidando de “freak cabaret”, a miscelânea de elementos que atonam na sua noção de espectáculo, em que à música se juntam o uso de vídeos, o guarda-roupa em elevada rotação ou as caras pintadas de branco-espanto, as Dakh Daughters são um furacão em palco, em contínua surpresa. Se uma delas canta A Felicidade, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim (mais conhecida pelo refrão “Tristeza não tem fim, felicidade sim”) na mais absoluta penumbra, com as luzes de palco ausentes e o fumo a envolvê-la num mistério crescente, momentos de acalmia como este desembocam sempre num delírio punk assente apenas em instrumentos acústicos (violoncelo, guitarra, acordeão, piano, percussões, contrabaixo ou trembita – parente do didjeridoo).

E isto porque a música, que vai desse punk-folk até evocações de Patti Smith ou mesmo dos Eurythmics (sempre que o lado cabaret assume uma postura de pop a roçar o barroco), nunca se torna acessória ou decorativa no espectáculo esfuziante das Dakh Daughters. Que uma actuação tão enérgica e quase desesperadamente viva e premente venha de uma Ucrânia em guerra civil mostra-nos uma vez mais como o cabaret continua a cumprir-se neste escape excessivo de fantasia que se agarra a um passageiro desligamento da realidade.

A palavra dos palcos

O palco proporciona frequentes surpresas. Depois das Dakh Daughters, que ficarão certamente como uma das imagens mais fortes e duradouras deste FMM, o guineense Moh! Kouyaté e os congoleses Mbongwana Star deixariam uma ideia bem diferente daquilo que são em disco. Em estúdio, a música de Moh! Kouyaté soa um pouco mais mole, mais indistinta de toda a música com guitarras vinda do continente africano desde que Ali Farka Touré se tornou uma referência global. Em vez de uma candura que o poderia aproximar de um espelho de Ben Harper virado na direcção da Guiné-Conacri, Kouyaté apareceu-nos, feitas as contas, como um portento de música contagiante – e nem os problemas com a guitarra eléctrica beliscaram grandemente a sua sofreguidão de palco.

Por outro lado, quando o sucesso dos Staff Benda Bilili fez estragos e provocou a saída de Coco Ngambali e Théo Nzonza, a cisão parecia então dever-se tanto às acusações dirigidas ao management da banda quanto à direcção sonora que deveria seguir-se. E a partir deste segundo argumento, Coco e Théo levaram a sua versão de rumbas com ADN de Kinshasa até às mãos do produtor Liam Farrell, que os ajudou a percorrer no disco de estreia dos Mbongwana Star uma estrada mais sideral e electrónica do que aquela palmilhada no cancioneiro que traziam de trás.

Assistir à vida de palco dos Mbongwana Star é sorrir perante a banda que são sem a mão de Farrell a maquilhar a música. Aquilo que verdadeiramente aconteceu com a separação é que passámos a ter dois Staff Benda Bilili (SBB) – aqueles que ficaram com o nome original e estes que, rodeados de alguns novos talentos congoleses, passaram a operar com nova designação. Se o som dos SBB se electrificara e agitara com a entrada do miúdo Roger Landu, tocando de forma demoníaca um satonge artesanal de uma corda feito de material do lixo, essa mesma energia transbordante é assegurada nos Mbongwana pelo guitarrista Jean-Claude Mulodi, músico frenético, com Jimi Hendrix nos ouvidos, e grande responsável – a par da bateria tocada très, très fort – pela forte dosagem rock’n’roll que dispensa, em absoluto, qualquer intromissão electrónica. Aquilo que poderia ser uma fraqueza é, afinal, uma inequívoca força. Uma confirmação pelas razões inesperadas.

Viagens interplanetárias

Se a noite de quarta-feira se prolongou na Praia Vasco da Gama com os peculiares Nine Treasures – uma banda de folk-metal da Mongólia que parece querer reproduzir o cancioneiro dos Metallica ao início de cada tema, mas assim que dá ordem de entrada aos instrumentos tradicionais mongóis o peso agressivo transforma-se no espaço de um segundo numa festa popular ligeiramente mais ruidosa –, a descida até à praia na noite seguinte teria como chamariz os ingleses The Comet Is Coming. E é justa a alusão a um cometa, porque é sempre para o espaço (olá, Sun Ra, por aqui?) que o trio aponta. Na cauda do saxofone de King Shabaka, teclados e bateria ajudam a criar viagens interplanetárias mais eficazes e imediatas do que o turismo espacial empreendido pelo magnata Richard Branson. Por vezes, emerge algo de explosivo na linha do jazz-rock magrebino dos Melt Yourself Down, mas o excelente concerto é mais fértil em fantasiar a vida de Archie Shepp ou Albert Ayler a bordo de um space shuttle.

A quinta-feira do Castelo ficaria por conta dos brasileiros Bixiga 70, da cantora da Mauritânia Noura Mint Seymali e do lendário músico das ilhas Reunião Danyèl Waro. Se os Bixiga são uma oleada armada de ritmo, que parte de uma fusão eficaz entre jazz e MPB, passando pelo afrobeat e pelo reggae sem grande tempo para descanso (tornando-se, por vezes, algo maçudo), Noura Seymali é um caso curioso de resolver. Colocada diante de um manager mais exigente, a excelência da cantora seria preservada e amplificada por uma limpeza na sua banda – um guitarrista que toca sistematicamente desafinado, um baixista sem qualquer definição de som e um baterista feito de uma rigidez europeia não deveriam privar Noura dos voos mais ambiciosos que a sua magnífica voz mourisca promete.

Waro, pelo contrário, apresentou uma música reduzida ao essencial, vozes e percussão, de uma depuração exemplar. Assinar todo um concerto entusiasmante com o estrito recurso a esta típica combinação das ilhas Reunião, pôr toda a plateia a dançar e convencer-nos de que a sua música não tem espaço nem para mais um milímetro de intervenção só está ao alcance de grandes e experimentados músicos. Uma lição, talvez, para os músicos de Criatura, que na véspera colocaram em palco a coexistência (às vezes falha em harmonia e justificação) de tantos e diversos elementos que nem sempre se colhe um benefício final. Exemplo perfeito foi o da participação do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, cujas modas alentejanas não beneficiam especialmente com a intervenção da Criatura.

O colectivo ganhou sempre que a herança de Fausto, Gaiteiros de Lisboa e José Mário Branco se fez sentir, com o tom exploratório de pousio e o popular mais presente, como nos óptimos temas finais Tempo e Bem Bonda. Fausto esteve também honorariamente no palco com os Retimbrar, grupo do Porto cuja matriz de recolhas de ritmos tradicionais portugueses é depois passada por um apurado filtro de canção. É essa provavelmente a sua maior conquista: a de partir do universo popular, agitá-lo com pequenos desvios e, pelo caminho, não deixarem de almejar e alcançar um reportório vivamente popular. No Facebook, Né Ladeiras faria like neste concerto. E não seria para menos.

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