A música de Bachar é poesia selvagem

Juntando em si todos os sons com que cresceu, da música árabe e da clássica ao jazz, ao hip-hop e à electrónica, o franco-libanês Bachar Mar-Khalifé é um músico que se recusa a ser alguém. Sábado, no FMM Sines, mostrará quem será nesse dia concreto.

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FOTO: Lee Jeffries

Bachar Mar-Khalifé fala de um momento de ruptura na sua vida. Houve um antes e um depois de 1989, altura em que, com seis anos, os seus pais decidiram (como muitos outros) abandonar o Líbano em fuga da sangrenta guerra civil que se prolongou por 15 anos e provocou um êxodo de perto de um milhão de libaneses. À semelhança da grande maioria, também os pais de Bachar contavam regressar ao Líbano assim que a segurança estivesse assegurada. Acontece que haviam partido para França com os filhos, iniciado um processo de integração em idade escolar das crias, começado a construir uma nova vida e a recuperar de muitos anos em sobressalto. Num repente, tinha deixado de ser assim tão fácil e linear colocar em cima da mesa o regresso diante de adolescentes que mal se lembravam do que tinha sido viver noutro sítio, ter outros amigos, palmilhar outras ruas.

Em 1989, a escolha de sair não pertenceu a Bachar, naturalmente. Talvez por isso, chegado à idade adulta e passados 20 anos, reconheceu em si a firme e crescente vontade de querer voltar. “Atraía-me muito a ideia de regressar e viver por lá alguns anos, conhecer músicos, trabalhar e viver nas ruas de Beirute, que é a minha cidade-natal”, conta o franco-libanês ao ÍPSILON. “Sempre que vou a Beirute é algo de muito especial – não é lógico, é algo físico. A pele, os cheiros, tudo é físico na minha ligação à cidade.” Esboçou então um primeiro ensaio de regresso ao Líbano, ficou por lá dez dias, estando obrigado a interromper a viagem devido a concertos agendados na Europa. Mais uma vez, os afectos tomaram-lhe conta das decisões e ao cumprir esses compromissos em França acabaria por conhecer a sua mulher. Num par de anos, também ele tinha filhos e, da mesma maneira que os pais tinham fugido do Líbano num instinto de protecção dos seus descendentes, Bachar arrumou dentro de si a tentação mais imediata do regresso.

“Não se pode pensar da mesma maneira quando se é um jovem solitário e quando se tem filhos”, admite. “Acho que toda a gente no Líbano me chamaria louco se quisesse retornar e viver ali com os meus filhos, porque não há qualquer futuro e há sérias questões de insegurança. Quase todos aqueles que vivem no Líbano sonham em ir viver para outro lado.” Bachar sabe bem que a sua idealização do regresso, bela precisamente porque idealizada, poderia e pode muito bem esbarrar num desapontamento demasiado doloroso. Só que sentindo que a escolha de permanecer ou sair lhe foi roubada, só voltando a viver o dia-a-dia no Líbano – não de visita mas como habitante daquela terra – poderia reconstituir verdadeiramente o “seu” momento de decisão. As viagens, aliás, são frequentes. “Toda a minha família está lá actualmente, não estou desligado”, diz, para logo em seguida se corrigir. “Ou melhor, estou desligado, mas tal como estou desligado em qualquer outra parte do mundo, não apenas no Líbano.”

Ya Balad, terceiro álbum do cantor e instrumentista franco-libanês, aparenta uma forma de colmatar esta ausência do país e nasceu da tentativa de reconstruir e sarar o momento de ruptura. “Ya Balad é talvez a primeira vez em que penso sobre esse período da minha vida, antes de ter seis anos”, diz. “Na verdade, nem é bem pensar, é mais uma necessidade de trazer de volta esses sentimentos, porque a infância é o período mais poético da vida. Quando pensamos na infância, é sempre poesia – são sentimentos, cheiros, cores, medos. Acho que é por isso que me interessa muito ligar-me à infância através da música. A infância é também um espaço mais aberto, em que podemos falar da vida, da morte, da alegria e da tristeza. As crianças não têm medo de nenhum destes assuntos porque imaginam sempre muitas coisas.”

Daí que, a partir do presente, olhando para a sua vida no Líbano, conclua agora que a guerra terá sido muito mais dura e castigadora para os seus pais – “eu tinha acesso à minha imaginação mais facilmente”, compara.

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Não ser alguém

Ya Balad é o ponto de confluência de tantas sonoridades que existem em Bachar Mar-Khalifé que se torna impossível afirmá-lo como filho de qualquer tradição musical. Sendo, de facto, filho de Marcel Khalifé, reputado cantor e músico tradicional libanês, Bachar passou os primeiros anos a viajar com o irmão a reboque da agenda profissional do pai, habitando-se à sucessão de palcos e bastidores. Também nesse sentido, a emigração para França criou uma ruptura que a sua criação actual se propõe resolver. Antes da partida, a música árabe (assim como tradicional russa) e a clássica faziam parte do seu quotidiano, quer pela música que o pai tocava e ouvia em casa, quer pelos seus estudos de piano clássico. Em França, Bachar pediu para estudar percussão, convencido de que isso significaria percussão tradicional – “não sabia qual era a diferença”, confessa –, mas foi levado ao professor do Conservatório e instruído na percussão clássica – xilofone, tarola, timbale ou marimba.

Apesar da diferença substancial entre a percussão que fantasiara e aquela a que acabou por ter acesso, a curiosidade por aquele mundo foi combustível suficiente para investir nessa forma colectiva de trabalhar – inserido numa orquestra – por contraste com a experiência mais solitária que significava a formação pianística. Mandou o acaso que no mesmo edifício em que funcionava o Conservatório de Paris estivesse também sediado o Ensemble Intercontemporain, fundado e dirigido por Pierre Boulez, uma das referências primordiais da música contemporânea europeia, permitindo-lhe o contacto com compositores em actividade, da sua idade. “Aquele reportório era maravilhoso porque era escrito pelos compositores que íamos conhecendo e isso foi muito entusiasmante para mim”, recorda. “Sentia que estava a criar peças que nunca tinham sido tocadas, não estava a tocar Chopin, Bach, Liszt ou Rachmaninov.”

Até que se fartou das orquestras e percebeu que teria de perceber sozinho em palco a música que queria fazer. Em paralelo com a aprendizagem erudita, Bachar tinha ouvido rock, hip-hop, música electrónica, jazz e world music, um complexo mapa de referências, descomplicado em quem tinha crescido com uma insaciável “sede pela música e pelos sons”. “São os outros que nos fazem pensar no tipo de música que fazemos ou de onde vimos”, responde ao reflectir sobre as milhentas músicas que se insinuam na sua. Diante de um background tão diverso, a sua única preocupação, desta vez, foi a de não escolher. “Estou simplesmente a compor, não é muito intelectual – é orgânico. A melhor forma de escrever música é não pensar muito sobre isso, é algo selvagem, animal. A música levou-me a perceber que cada dia é diferente e que estamos sempre a mudar. Não somos sempre a mesma pessoa. O mundo é grande, nasci algures, vivi noutro sítio e amanhã estarei noutro lugar. Para mim isto é muito natural.”

De uma forma um pouco mais radical, Bachar diz mesmo não estar certo de ser alguém – no sentido da imobilidade do conceito. Pensa-se não tanto como um ser sólido, mas antes como uma alma líquida, mutável, sem qualquer obrigação de se apresentar coerente perante o mundo. E essa prova de coerência, misturada de equação matemática em que nascer num sítio implica um determinado percurso, apenas exaspera o músico. “Conheço bem a pressão actual em que nas nossas sociedades se pergunta cada vez mais ‘De onde vens?’”, desabafa. “Quanto mais me perguntam isto mais fujo às respostas. Não quero ser alguém. Sou algo.”

O primeiro tema de Ya Balad, Kieri elisom, oração grega que significa qualquer coisa como “Senhor, tende piedade”, é a oração que Bachar dirige a Deus para que “tenha piedade e nos deixe em paz”, censurado no Líbano por “atentado à entidade divina”. “É uma pergunta que Lhe faço também, porque é parte do que significa para mim questionar e duvidar das coisas; permito-me fazer perguntas através da minha música e da arte”, resume. Expondo as suas dúvidas em Deus, dizendo-se zangado com Ele por “hoje, na sociedade actual, a religião ocupar demasiado espaço”, queixa-se da falta de perguntas, de não se ler o suficiente e se baixar excessivamente a cabeça e dizer que sim sem pôr em causa as regras quotidianas às quais se obedece porque alguém determinou que assim se faz e deve fazer.

A tudo isso, Bachar responde com a poesia. “Tudo é poesia”, afirma, consciente da proposta radical que assina. “A poesia é uma forma de vida. Não digo que seja fácil e confortável, às vezes é muito complicado ver poesia em tudo – em mim e nos outros –, e pode até ser usado como insulto contra mim, mas é uma forma poderosa que me faz reagir. Imaginamos sempre a poesia como sendo flores, céu azul e amor, mas também é sangue, morte e violência.” E, assim, define a poesia como a sua religião. Basta-lhe como farol para a vida.

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