Ver para além das aparências

Na forma curiosa e inteligente como foi organizada, a colectânea de carreira que agora se edita, Pure, é a melhor forma de apreciar os 46 anos em que McCartney foi um ex-Beatle.

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Paul McCartney não acabou com os Beatles. Recomeçou. Tem dezenas de canções a que devemos regressar afp

É difícil desfazer ideias feitas e Paul McCartney sabe-o bem. Desde que os Beatles acabaram, em 1970, que se colou a Macca a imagem de popularucho com queda para a balada lamechas, a do diplomata que nunca se comprometia, a do conservador, por oposição ao rebelde John Lennon ou a George Harrison, mestre dessa instituição britânica a que chamamos wit. O conflito muito público com John, na ressaca no fim dos Beatles, a criação dos mal-amados Wings com Denny Laine e Linda McCartney nos anos 1970 ou os seus tenebrosos anos 1980, quando vistos superficialmente, cimentaram essa imagem, de que se foi libertando (apenas parcialmente) a partir de Flaming Pie, o álbum de 1997 que, McCartney reconciliado com as suas raízes e com o seu passado musical, marcou o início de um renascimento enquanto músico a solo.

Na forma curiosa e inteligente como foi organizada, a colectânea de carreira que agora edita, Pure, é a melhor forma de apreciar os 46 anos em que McCartney foi um ex-Beatle. Ao contrário do que é habitual em retrospectivas deste género, o alinhamento não segue uma sequência cronológica. Escreve Paul no curto texto de apresentação: “Eu e a minha equipa tivemos a ideia de reunir uma colecção das minhas gravações com nada mais em mente que ter algo divertido para ouvir. Para ser apreciado, quem sabe, numa longa viagem de carro ou numa noite em casa ou numa festa com amigos”.

Lançado em três edições diferentes (dois cd com 38 canções, quatro vinis com 20 canções, quatro cd com 67 canções), Pure é fiel ao título. Está aqui tudo: os êxitos que passaram vezes sem fim na radio, o magnífico e os tiros ao lado, a pop mais orelhuda e a canção confessional, a canção de base folk e a tentação electrónica. Neste vaivém entre tempos e estéticas sonoras fica aquela voz, a tão virtuosa voz de Macca, e um fluxo musical que nos mostra que, ao contrário da imagem criada, há muita riqueza a garimpar neste percurso a solo habitualmente subvalorizado.

Os dois primeiros cd (abordamos nesta crítica à edição de quatro) são mesmo irrepreensíveis. A balada ao piano Maybe I’m amazed, do belíssimo álbum de estreia a solo, homónimo, dá o mote. Heart of the country, de Ram, editado em 1971 e provavelmente o seu melhor álbum em nome próprio, é Inglaterra verdejante de olhos postos na planície americana – e não destoaria no White Album. São as duas primeiras e é oficial: estamos sob a influência de Macca. Assim continuamos. A pop descomplexada de Jet, dos Wings, a conviver com outra pérola de Ram, Dear boy, a Silly love songs que se intromete e que, neste contexto, se torna quase comovente – nada cheesy, como se escreveu vezes sem conta na imprensa britânica quando da sua edição em 1976 -, a nostalgia reconfortante de Early days, criada em 2013 e a Jenny Wren da sua obra-prima tardia, Chaos And Creation In The Backyard (2005). Posta de parte a visão parcelar e os preconceitos associados a determinados períodos do seu percurso, sobram “apenas” canções.

As escolhas permitem perceber que McCartney tem especial orgulho em Flaming Pie e nos dois álbuns iniciais, todos muito bem representados, e que não desdenha, de todo, o que criou com os Wings. Constata-se também que pode não ter criado a solo nada com o nervo e impacto emocional de Plastic Ono Band ou Imagine, os dois grandes álbuns a solo de John Lennon, ou com a ambição de All Things Must Pass, o álbum em que George Harrison abriu as comportas da criatividade que fora reservando enquanto estava limitado a contribuir para os álbuns dos Beatles com um par de canções. Ainda assim, “Pure” é revelador: mesmo considerando o maior tempo de actividade que tem perante Lennon e Harrison, é de McCartney a produção musical mais consistente e recompensadora no pós-Beatles – Big barn red rocka a sério no seu modo blues-glam, Live and let live (cd 2) é um clássico da produção épica e ricamente orquestrada dedicada à saga James Bond, Temporary secretary, saído de outro dos clássicos a solo, McCartney II, editado em 1980, é um clássico new-wave que a new-wave não reconheceu e que, na sua estrutura orgânico-sintética, podia ser obra de miúdos muito inspirados saídos de Brooklyn em 2016.

Claro que, numa colectânea tão abrangente, não escapamos ao lado negro. Há momentos em que percebemos que vamos ter que encurtar a tal viagem de carro ou em que tememos pelo ambiente na festa em casa com amigos. Felizmente, está quase tudo concentrado no cd3 – não, não há salvação para Pipes of peace ou Ebony and Ivory, prova definitiva que bons sentimentos podem resultar em atrocidades musicais. Mas a verdade é que até as falhas acabam aqui por ser enriquecedoras. Constatamos que existem, passamos as canções à frente e, tudo reunido, temos o quadro completo. Pure, como dito pelo próprio.

Iniciamos a viagem pelo início, com o Maybe I’m amazed de McCartney. Terminamo-la com Junk, do mesmo álbum, curta peça acústica de menos de dois minutos. Nela, um talento abençoado para inventar melodias que parecem ter existido desde sempre. A capacidade de extrair de cenários banais uma doçura tocante e um romantismo eivado de nostalgia. Paul McCartney não acabara com os Beatles. Estava prestes a recomeçar. “We always came back to the songs we were singing at any particular time”. McCartney tem dezenas a que devemos regressar.

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