Humana comédia

Academia das Musas é uma comédia bastante humana, entre a verborreia digna de uma screwball da Hollywood antiga e a filosofia sentimental das comédias e provérbios de Rohmer.

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Um filme inclassificável, no seu deslizamento do que parece documental para o que parece ficcional

Quase vinte anos depois de Comboio de Sombras, eis finalmente o regresso de José Luis Guerín, um dos maiores cineastas espanhois da actualidade, ao circuito comercial português. Pelo meio perdeu-se muita coisa, apenas vista em festivais e sessões avulsas, como o genial Em Construção, filme do princípio da década passada – e sobre a renovação de um bairro popular degradado de Barcelona – que muito sentido faria na Lisboa contemporânea, quanto mais não fosse por mostrar tão bem como uma remodelação urbana não é apenas uma questão arquitectónica, implica sempre uma remodelação social.

Mas estamos longe disso na Academia das Musas. É um filme bastante inclassificável, em primeiro lugar quanto a um “género”, no seu progressivo deslizamento do que parece “obviamente” documental para o que parece “obviamente” ficcional. É o tipo de fronteira em que Guerín gosta de situar muitos dos seus filmes, dissipando – ou confundindo – fronteiras entre documento e ficção, entre a realidade como ela se dá a ver e a realidade, digamos, “preparada” para a câmara. O começo de Academia das Musas parece “obviamente” documental. Fiel ao seu título, estamos numa aula universitária, onde um professor de filologia discorre sobre o amor e a linguagem amorosa, sobre as musas clássicas, sobre a “Divina Comédia”, sobre a história de Heloísa e Abelardo. As reacções das estudantes (os estudantes rapazes são filmados a pôr o dedo no ar para intervir mas praticamente não são ouvidos) colocam a hipótese, nessas cenas de abertura, de estarmos perante um filme sobre um conflito de linguagens (e da “linguagem nunca se sai”, como o professor, mais para a frente, terá ocasião de lembrar): a linguagem poética da época clássica e a linguagem moderna, politicamente consciente, que reage, numa perspectiva “feminista”, chamemos-lhe assim, às divagações do professor sobre o papel inspirador, transformador, das “musas” – sendo a questão colocada como a dúvida sobre se esse papel reservado às musas, às mulheres, é um papel passivo ou activo. Filmadas como se estivéssemos numa verdadeira aula (e provavelmente estamos mesmo, por mais que ela tenha sido “preparada”: o protagonista, Raffaele Pinto, é realmente professor de filologia na Universidade de Barcelona, onde o filme foi rodado), essas cenas, bastante divertidas, abrem A Academia das Musas sob o signo de uma “comédia da linguagem”.

E, no fundo, uma “comédia da linguagem” o filme será sempre, embora vá tirando o tapete dos pés do espectador. Há aquelas cenas domésticas, em casa do professor e da mulher, em que ela contesta o discurso dele, contrastando a “realidade” à “poesia”, a “história” ao “mito”. Há as cenas em que as estudantes discutem, entre elas, o teor das aulas, com uma precisão conceptual que também parece instalar-se numa fronteira entre o discurso universitário e a sua caricatura irónica. Há a história da aluna que teve uma relação pela internet com um rapaz, relação totalmente baseada no que escreviam um ao outro, e que através da tecnologia moderna relança a hipótese de a palavra se voltar a tornar instrumento de sedução essencial. Há, numa estranha sequência “documental” na Sardenha, o encontro com os pastores e os seus cânticos passados de geração em geração, evocações dos sátiros e das ninfas da mitológia clássica. Há uma visita a Nápoles (e a um museu que muito evoca uma célebre sequência da Viagem a Itália de Rossellini) e ao lago Averno, a clássica “entrada no Inferno”, há uma consulta à Sibila. Por este lado, e sem qualquer ironia, A Academia das Musas é um filme sobre esta persistência, sobre o lugar do “clássico” no “contemporâneo”, como um “inconsciente” – no sentido psicanalítico – a modular, na sombra, os comportamentos e as explicações para os comportamentos.

Mas depois tudo são, efectivamente, palavras, e nada mais do que palavras. À medida que Guerin vai levantando a “cortina” que laboriosamente mantivera durante a primeira parte do filme, o grau irrisório – ou derrisório – de A Academia das Musas vai vindo ao de cima. E se as palavras, incluindo as do professor, não fossem mesmo mais do que um instrumento de sedução (das suas alunas), e apenas isso? E se a Academia das Musas não fosse apenas o título do filme mas a instituição ficcional que está no seu centro, e estivéssemos portanto numa ordem de absoluta “literalidade”? Paradoxalmente, é através desta revelação do que está por detrás da “cortina”, totalmente exposto na sequência final da conversa entre a mulher do professor e uma das suas alunas, que A Academia das Musas deixa um travo ligeiramente decepcionante, como se Guerin não resistisse a explicar a anedota e a trazer uma certeza ao espectador. Ao mesmo tempo isso faz todo o sentido na progressão do filme, no seu trajecto entre o sublime e o corriqueiro, entre a mais elevada linguagem poética e conceptual e a sua conversão em simples “conversa de engate”. A “divina comédia” revela-se, afinal , uma comédia bastante humana, entre a verborreia digna de uma “screwball” da Hollywood antiga e a filosofia sentimental das comédias e provérbios de Rohmer: o discurso amoroso feito em fragmentos.

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