O homem que explicou O.J. Simpson ao mundo

Conversa com Ezra Edelman, o norte-americano que realizou O.J.: Made in America, um documentário de sete horas sobre o jogador que actualmente está preso no Nevada

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Ezra Edelman fotografado em Los Angeles Kyle Monk para o <i>The Washington Post </i>
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O.J. Simpson com o seu filho Jason, à direita, dá autógrafos no aeroporto internacional de Buffalo em 1980. Mickey Osterreicher, cortesia da ESPN Films
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O. J. Simpson fotografado em 2013 REUTERS/Jeff Scheid

“Meu, não tenho respostas.” É uma frase que pode ser interpretada como alguém a esquivar-se à pergunta, mas vinda de Ezra Edelman é mais uma declaração de intenções.

O realizador, que cresceu na região de Washington, teve a audácia de fazer um documentário de sete horas e meia sobre um dos temas mais requentados da história americana recente e recebeu uma enxurrada de elogios da crítica. A New York Magazine chamou-lhe “obra-prima” e o crítico do Washington Post, Hank Steuver, considerou-o “um feito de topo”. E conseguiu-o sem tentar vender ao espectador novas revelações espalhafatosas. “Não é nisso que estou interessado”, disse enquanto comia tacos perto da sua casa, no bairro de Fort Green, em Brooklyn (Nova Iorque). “Estou a fazer uma coisa um bocadinho diferente.”

O que Edelman faz em O.J.: Made in America, um épico intelectual em cinco partes e que abrange meio século, é perspectivar a história de O.J. Simpson como um teste de Rorschach para a psique americana. Herói ou vilão, criador ou criação, negacionista ou um exemplar da sua raça, seja como for que vejamos O.J. isso diz tanto sobre nós, americanos, como fala do enigma humano que actualmente se espraia numa prisão no Nevada.

Ao contrário da recente minisérie do canal FX (transmitida em Portugal pela Fox) The People v. O.J. Simpson: American Crime Story, que se focava no julgamento de Simpson pelo homicídio da ex-mulher e de um amigo desta, o documentário de Edelman começa três décadas antes, quando o running back carismático e prodigiosamente talentoso se começou a isolar das expectativas e das preocupações da sua raça.

"O que percebi logo à partida foi que havia um paralelo [a fazer] com o O.J. de 1967 – um miúdo que cresceu num bairro de habitação social em São Francisco – a chegar a um sítio de brancura conservadora com muitos alunos ricos [a Universidade de South California], que é literalmente ao lado de outro sítio que, um ano e meio antes, tinha sido incendiado pela dinâmica entre a polícia e os cidadãos negros de Los Angeles. Daí, O.J. segue um caminho em que ignora completamente a causa e a condição dessas pessoas – até que isso se vira ao contrário quando chegamos ao julgamento. E aí percebe-se: é essa a história.”

O.J.: Made in America estreou-se no canal generalista ABC no sábado passado e passará agora no canal desportivo ESPN, não estando ainda prevista a sua estreia na televisão portuguesa.

A narrativa do próprio Edelman parece tê-lo preparado bem para explorar o fenómeno de O.J.. Tem 41 anos, cresceu em Cleveland Park e tem raça mista. É filho de Marian Wright Edelman, conhecida activista de direitos civis e fundadora do Children's Defense Fund, e de Peter B. Edelman, professor de Direito de Georgetown que se demitiu muito publicamente do seu cargo de sub-secretário de Estado da Saúde na administração Clinton por causa da reforma da Previdência.

Antes de estudar História em Yale, frequentou a escola Quaker Sidwell Friends, e lembra um encontro de oração, na “pequena bolha” em que viviam, que foi interrompido pela fúria em torno do espancamento de Rodney King (um incidente que paira sobre a narrativa de O.J.). Edelman recorda esse incidente como uma prova de que era muito protegido da realidade ao crescer.

Contudo, o que o atraiu inicialmente para este projecto não foi o tema com tal forte carga, mas sim a possibilidade de trabalhar com uma duração pouco comum. “O conceito inicial para a tela – foi isso que me agarrou”, diz. “Contar uma história ao longo de tanto tempo é um desafio para mim, independentemente de estar a fazer um filme sobre O.J. ou a fazer um filme sobre o restaurante em que estamos agora.”

Depois da universidade, fez pesquisa para as transmissões dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1988 no canal CBS e acabou por realizar dois documentários, incluindo Magic & Bird: A Courtship of Rivals (HBO), que venceu um prémio Peabody, e The Curious Case of Curt Flood, sobre um jogador que em 1970 interpôs um processo judicial por ter sido trocado para outra equipa e cujo caso chegou ao Supremo Tribunal. Cada um deles tem em conta as tensões raciais e sociais envolvidas nos feitos e percursos de cada um dos atletas.

“Ele é tão cuidadoso quanto ao tema da raça, não de uma forma que domine a narrativa, mas de formas que de facto nos desafiam a pensar sobre o que se está a ver”, diz o produtor executivo de O.J., Connor Schell. “Ao lidar com Ezra, percebemos rapidamente que não podemos dizer-lhe casualmente coisas em que não tenhamos pensado inteira e exaustivamente. Porque tudo em que pensámos, ele também pensou”, acrescenta.

Edelman foi cativado pelo desporto desde jovem e era um fã fervoroso da equipa de basquetebol de Georgetown. Como o pai era professor na Faculdade de Direito daquela universidade, ele costumava andar pela Yates Field House e entretinha-se com videojogos. “Lembro-me de estar a sentar-me para jogar Galada e de haver um tipo do que se sentou à minha frente e me pediu ‘Posso jogar contigo?’. Era o Patrick Ewing", conta. "Eu tinha tipo oito anos e ele tinha dois metros e eu disse-lhe ‘Ok’.” O facto de ser uma equipa só de negros, treinada por um negro sem rodeios numa escola sobretudo branca é algo que exploraria mais tarde em Requiem for the Big East, mas não foi por isso que se interessou pelos Hoyas quando era miúdo. "Para mim, era uma questão de ser a equipa local. E eles eram do caraças”, disse.

Edelman era o mais novo de três irmãos e o único filho que não foi trabalhar no que o seu irmão chama “o negócio de família”. Jonah Edelman, ao telefone a partir do estado do Oregon, é co-fundador e CEO do grupo de defesa de direito à educação pública Stand for Children; o irmão mais velho, Joshua, trabalha na área da educação como administrador. Jonah descreve Ezra como uma criança que foi sempre introvertida e maravilha-se pelo facto de se ter estabelecido em termos de carreira nas artes apesar de vir de uma família “que não descreveria nem como um bocadinho criativa”, riu-se.

"Ez vê-se, de certa maneira, como a ovelha negra da família – o que é cómico quando vemos o que já conseguiu”, diz. Apesar de os seus pais, que não quiseram ser ouvidos para este artigo, terem apoiado todas as decisões dos seus filhos, Jonah Edelman admite que a fasquia tinha sido colocada muito alto. “É muito aquele peso existencial que sentimos quando crescemos numa família em que a nossa mãe é uma líder dos direitos civis que trabalhou para o Dr. [Martin Luther] King e o nosso pai trabalhou para Robert Kennedy, e ambos tiveram carreiras ilustres no seu trabalho em questões sociais.”

De volta ao restaurante, Ezra Edelman descreveu as complicações que enfrentou por ter trilhado o seu próprio caminho. “É tipo, isto é bom? Há valor nestas coisas a que dediquei o meu tempo? Muito disto alimenta-se sozinho. É muito internalizado. E demorei alguns anos a sentir-me melhor quanto a isso”, disse.

A ironia é que Edelman fala como alguém que fez agora um contributo significativo para a conversa sobre raça e celebridade na América. “É interessante chegar a um sítio onde se ganha alguma tração no que se faz e questionamo-nos se isso valida o caminho que escolhemos”, diz.

Leva a conversa de volta a O.J. e à irresolução cultural que continua a preocupá-lo. “Que coisas são estas que contribuíram para o motivo que levou toda a gente a perder o juízo?”, diz. “Tenho perguntas sobre o que deve ter passado pela cabeça de O.J. nos últimos 20 anos, mas não tenho mais acesso a isso do que aquilo que vos mostro. Vejam e pensem por vocês mesmos”.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

 

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