“Estas imagens obrigam-nos a reflectir sobre quanto custa o prazer de fumar”

Doentes, cadáveres e membros amputados vão começar a aparecer nos maços de tabaco, a partir de hoje. Cigarrilhas e charutos ficam de fora. Governo atira comparticipação de medicamentos de cessação tabágica para 2017.

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Dois exemplos de imagens que começam a circular nesta sexta-feira União Europeia

Os fumadores que a partir desta sexta-feira parem no café ou no quiosque para comprar o seu habitual maço de tabaco vão começar a meter no bolso, além do troco e dos cigarros, a imagem de uns pais que choram a morte do filho bebé ao lado de um caixão branco. Ou de uma mulher a cuspir sangue, ou de um cadáver ou de uma boca com lesões cancerosas e dentes podres. As imagens, que passam obrigatoriamente a constar dos maços que são fabricados (ou importados) a partir de hoje, configuram uma acção de “bullying social perverso”, como argumentou o deputado do PS, José Junqueiro, aquando da votação da lei, no Parlamento? Ou são, como contrapõe a médica Emília Nunes, directora do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo, uma forma de retirar o atractivo ao acto de fumar, “sobretudo entre os adolescentes”?

A voz a André Garcia, 19 anos. “Se visse essas imagens num maço, ia pensar duas vezes sempre que fosse pegar num cigarro. A mim, chocar-me-ia. E muito provavelmente iria impedir-me de fumar.” À porta de uma das faculdades da Universidade do Porto, no centro da cidade, o estudante usa o condicional porque chegou a fumar meio maço por dia. Agora já não. “Deixei quando o meu avô morreu com cancro do pulmão. Sempre que olhasse para uma imagem dessas, iria lembrar-me disso.”

Ao lado, Sérgio Martins, 18 anos, acaba o cigarro para dizer que considera as imagens “abusivas”. “Um filho que tenha um pai fumador e que veja essas imagens no maço vai ter que se consciencializar que o pai poderá morrer com uma dessas doenças”, sustenta. “Até pode acontecer que o filho convença o pai a deixar de fumar”, opina Mafalda Ferreira, 18 anos, piercing no nariz e também ela de cigarro entre os dedos. Sérgio retoma o raciocínio para acrescentar que “os avisos com letras” eram já suficientes para o pôr a pensar “nos malefícios dos cigarros” e continuar a fumar mesmo assim. E Ana Marta Ferreira, que aos 18 fuma “mas apenas cigarros de mentol”, junta-se ao grupo para antecipar que o que poderá acontecer é as fotografias fazerem aumentar a venda “daquelas cigarreiras e embalagens com design”.

Há divergências nesta conversa, como as há relativamente à eficácia da introdução destas imagens nos maços de cigarros enquanto medida dissuasora de um vício que mata em Portugal mais de 30 pessoas por dia, segundo a directora do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo. Mas há certezas quanto ao que define a nova lei do tabaco que vigora desde o dia 1 de Janeiro e que estipula a obrigatoriedade de, a partir de hoje, a indústria do tabaco exibir em 65% das duas faces dos maços fotografias de choque, acompanhadas de informação sobre onde procurar apoio para deixar de fumar, como o site da Direcção-Geral da Saúde (www.dgs.pt) e a Linha de Saúde 24 (808 24 24 24). Aos maços somam-se ainda advertências como “Fumar pode matar o seu filho antes de ele nascer” e “O fumo do tabaco contém mais de 70 substâncias causadoras de cancro”.  

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Cigarrilhas e charutos de fora

As novas regras de rotulagem, que resultam da transposição de uma directiva europeia, estendem-se ao tabaco para enrolar e destinado a cachimbos de água (narguilé). Num caso como no outro, foram dados prazos para adaptação: o tabaco pode ser vendido de acordo com as regras actuais até Março de 2017 desde que tenha sido importado ou produzido antes de Maio de 2016, ou seja, esta sexta-feira. Na prática, a lei dá um ano para que os diferentes operadores da cadeia de distribuição esgotem os stocks. Já a proibição da incorporação de substâncias como o mentol nos produtos de tabaco beneficia de um regime transitório que vai até 20 de Maio de 2020. E só em Dezembro desse mesmo ano é que estabelecimentos como cafés e restaurantes terão de estar adaptados às novas regras que ditam, por exemplo, que os espaços para fumadores não impliquem a exposição dos trabalhadores ao fumo, e que sejam “separados fisicamente ou totalmente compartimentados”, semelhantes aos “aquários” existentes nos aeroportos.

“Os prazos são tão alargados que acabam por não fazer sentido”, critica o coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, José Pedro Boléo-Tomé, para quem as moratórias incluídas na lei configuram uma cedência “incompreensível” aos interesses económicos. “Irlanda, onde a cultura do pub é fortíssima, avançou com a proibição total do fumo em todos os restaurantes e bares. Os empresários pensavam que iam perder clientes mas isso não se verificou, porque a lei foi muito bem acompanhada pelas autoridades e teve uma adesão brutal. Aqui, as autoridades retraem-se sempre que é preciso dar um passo mais incisivo. E o próprio facto de os maços serem gradualmente substituídos vai retirar o impacto das imagens na venda e consumo.” A responsável pelo tabagismo na DGS, Emília Nunes, também acha que “Portugal devia adoptado a proibição total do fumo em casinos, bingos, salas de jogos, restaurantes e hotéis, como acontece noutros países como o Reino Unido e a França”.

Além das moratórias, as críticas à nova lei centram-se nas excepções admitidas. É que as novas regras de rotulagem deixam de fora outros produtos de tabaco, como o destinado a cachimbo, os charutos e as cigarrilhas. “Nós não devíamos ter aceitado esta excepção, sob pena de passarmos ao consumidor a ideia de que há produtos com um risco menor”, lamenta Emília Nunes, lembrando que “o Reino Unido só exceptuou os charutos em embalagens individuais”.

Comparticipar fármacos só em 2017

Depois há a questão das omissões. A ideia de proibir o fumo dentro dos carros com crianças a bordo, que chegou a ser defendida pelo ex-ministro da Saúde, Paulo Macedo, numa ida ao Parlamento, em 2012, caiu por terra. A comparticipação dos medicamentos de cessação tabágica também anda no plano das intenções dos últimos Governos mas nunca saiu do papel. “Já devia ter acontecido há muitos anos”, defende Boléo-Tomé. “O tabagismo implica custos para o Serviço Nacional de Saúde muito superiores a outras dependências que já são tratadas e comparticipadas pelo Estado”, insiste.

A responsável da DGS recorda que já foram feitas propostas nesse sentido. Mas diz não saber “a que ponto há possibilidade de voltar a essa discussão”. O anterior secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Leal da Costa, chegou a anunciar, em Novembro de 2014, a disponibilidade do Governo para comparticipar em 40% o custo daqueles medicamentos. O actual detentor do cargo, Fernando Araújo, também disse, em Março, que o Governo estava a avaliar essa possibilidade. Questionada pelo PÚBLICO, fonte do seu gabinete disse agora que tal “não foi possível por limitações orçamentais, mas existe abertura para se ponderar esta questão no próximo ano”.

A adopção das embalagens genéricas foi igualmente adiada. A directiva europeia abre a possibilidade de os Estados-membros obrigarem os fabricantes a apresentar maços sem o logótipo da marca, com apenas o nome em letras brancas e standardizadas sobre um fundo pouco apelativo e com as mesmas imagens que chegam agora aos consumidores portugueses. A medida entra hoje em vigor na Irlanda e no Reino Unido e outros países, como a França, Hungria e Eslovénia, estão também a trabalhar nesse sentido. Portugal não foi por aí. E ainda bem, na óptica da Tabaqueira, propriedade da Philip Morris International, e detentora de uma quota de cerca de 63% do mercado do tabaco em Portugal, para quem tal medida restringe a possibilidade de as empresas de tabaco “competirem entre si”, conforme sustentou ao PÚBLICO fonte daquela empresa.

Para Emília Nunes, pelo contrário, seria “uma medida muito útil, porque retira a atractividade da embalagem”. E, nessa medida, poderá dissuadir o consumo entre os jovens, o que não é despiciendo se considerarmos que os dados mais recentes apontam para um aumento da experimentação do tabaco: se, há dez anos, 62,9% da população dizia nunca ter fumado, essa percentagem tinha descido para os 58,2% em 2014. A responsável da DGS mostra-se ainda assim optimista quanto ao impacto das fotografias, “sobretudo nos adolescentes e nas pessoas que querem deixar de fumar”. E, insiste Emília Nunes, “não é bullying nem agressão”. “É a medida mais económica e a forma mais eficaz e rápida de chegar às pessoas, incluindo às que não sabem ler.”

Pela parte que lhe toca, André Garcia diz que a campanha surtiu o efeito desejado, mesmo antes de ter arrancado. “Se alguma vez me sentisse tentado a voltar a pegar num cigarro, acho que não conseguia. Fumar é a procura do prazer e estas imagens fazem-nos reflectir sobre quanto é que esse prazer custa, de facto.”

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