José Barahona filmou como se estivesse ao espelho

Um cineasta português radicado no Brasil filma histórias da imigração brasileira em Lisboa. Usou o guião como rede e abriu-se ao improviso de actores não-profissionais.

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FOTO: Miguel Manso

À superfície a mais “convencional” das quatro longas a concurso no Indie, Estive em Lisboa e Lembrei de Você adapta o romance do escritor Luiz Ruffato sobre a vivência de um imigrante brasileiro que vem para Lisboa “começar de novo” (Paulo Azevedo, um dos poucos actores profissionais do elenco). Mas José Barahona (n. 1969) apropriou-se do livro no processo de escrita e rodagem, ao incorporar personagens surgidas das próprias histórias de imigração dos actores não-profissionais que participam no filme, e abrindo-se a uma dimensão de documentário e improviso que o realizador português assume como “muito ambígua”.

“Tinha um guião muito estruturado, mas era uma rede,” explica ao PÚBLICO Barahona, recém-chegado de Paris para acompanhar o filme (que já foi apresentado, com excelentes reacções, na Mostra de São Paulo em 2015). “O argumento serviu-me de referência para improvisar à vontade com os actores, não tanto na rodagem, mas em ensaios, porque tínhamos pouco tempo para rodar e quando chegámos já os improvisos estavam mais solidificados. O segredo para trabalhar com não-actores, ou com actores amadores, é não dar texto – trabalhar a partir de um conceito de cena, de dar um ponto de partida e explicar onde é que queremos chegar, para surgirem as palavras deles e isso se tornar espontâneo.” Tudo com a “bênção” de Luiz Ruffato, que não quis “ter influência” no processo e acabou por ficar muito contente com o filme. Foi o próprio escritor que admitiu: “Quando ouviu o Paulo Azevedo a falar pela primeira vez, disse 'esta era a música que eu ouvia no linguajar que eu escrevi'.”

Há, ainda, uma outra proximidade com a realidade no filme: Estive em Lisboa é a história de um brasileiro que vem para Portugal à procura de uma vida melhor, contada por um cineasta que partiu para o Brasil à procura de uma vida melhor. “Era um espelho de mim próprio”, explica o realizador. “Acabo de chegar ao Brasil, agora estou aqui a viver o dia-a-dia e estou a filmar um tipo que vem para a minha cidade e como é que ele olha pela primeira vez para ela...”

Formado na área de som (na qual trabalhou com nomes como Manuel Mozos, Fernando Vendrell ou Rita Azevedo Gomes) e com duas longas em carteira (Buenos Aires Hora Zero, 2004, e O Manuscrito Perdido, 2010, mostradas no DocLisboa mas que nunca tiveram estreia comercial), Barahona assume-se como cineasta português, e Estive em Lisboa como um filme português. “Toda a minha formação e vivência é no cinema português, é aquilo com que me identifico – o meu mestre foi o António Reis. Os mestres do cinema brasileiro tenho-os presentes de forma mais distante, porque não fizeram parte da minha formação.”

A semelhança do filme com a actual nova vaga de cineastas do Brasil - no modo como dilui a fronteira documentário/ficção - é, diz, “inconsciente”: “O Brasil tem uma história muito recente, e uma relação muito próxima connosco, mas ao mesmo tempo muito distante. É um mundo vasto e desconhecido, cheio de histórias, problemas e questões, um país que sentimos ainda estar em construção. E sempre quis procurar aquilo que está escondido.”

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