Depois do World Press Photo, os meninos de Mário Cruz ganham o Estação Imagem

Reportagem sobre a escravatura em escolas corânicas do Senegal valeu ao jovem fotógrafo o maior prémio de fotojornalismo português. Mário Cruz quer com ela mudar as coisas no terreno e publicar um livro.

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Fotografia da série Talibés, Escravos dos Tempos Modernos do fotojornalista português Mário Cruz, um trabalho originalmente publicado na revista Newsweek Mário Cruz
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Fotografia da série Talibés, Escravos dos Tempos Modernos do fotojornalista português Mário Cruz Mário Cruz
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Fotografia da série Talibés, Escravos dos Tempos Modernos do fotojornalista português Mário Cruz Mário Cruz
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Fotografia da série Talibés, Escravos dos Tempos Modernos do fotojornalista português Mário Cruz Mário Cruz
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O Mapa dos Refugiados, retrato de uma ilha grega, Lesbos, valeu ao galego Gabriel Tizón o prémio da Foto do ano Gabriel Tizo

A reportagem Talibés, Escravos dos Tempos Modernos valeu ao fotojornalista português Mário Cruz o seu segundo grande prémio em dois meses. Depois de vencer na Categoria Assuntos Contemporâneos do World Press Photo, o trabalho que testemunha o tráfico e a exploração infantil de crianças e adolescentes que vivem em escolas corânicas do Senegal foi anunciado, neste sábado, em Viana do Castelo, como o grande vencedor do Prémio Estação Imagem.   

Depois de no ano passo ter entregue o grande prémio a um testemunho sobre os anos da troika em Portugal, de Bruno Simões Castanheira, o júri internacional do Estação Imagem Viana 2016, presidido por Aidan Sullivan, vice-presidente da Getty Images e presidente do júri do World Press Photo 2012, premiou, nas diversas categorias em competição, vários trabalhos em que o olhar dos fotojornalistas se deteve sobre o outro, ou os outros da sociedade em que vivemos, com essa reportagem tremenda de Mário Cruz à cabeça.

É a segunda vez que o fotojornalista de 28 anos ganha o prémio principal do Estação Imagem, depois de vencer em 2014 com Cegueira Recente. Este ano, admite ao PÚBLICO numa breve conversa está a ser decisivo, com os prémios – ganhou também um terceiro lugar na categoria de reportagem do Pictures of the Year International (POYi) – a chamarem a atenção para um tema que o marcou profundamente: “É claro que fico contente com os prémios e com o que podem fazer pela minha carreira, mas o que quero mesmo é que este meu trabalho de denúncia das condições em que estas crianças são exploradas, em que vivem, com medo, presas, sirva para que alguma coisa aconteça no terreno, para que haja pessoas responsabilizadas pelo que lhes tem acontecido nas ruas e dentro das escolas."

O fotojornalista gostaria de ver o Governo senegalês e a União Africana a intervir para “salvar da escravidão” milhares destas crianças. Há cerca de um mês, o executivo de Dakar entrou em contacto com Mário Cruz para que cedesse as suas fotografias para uma campanha de sensibilização para o problema, que pretende lançar em Maio. “Se estas fotografias não servirem para pressionar quem decide a mudar alguma coisa terão servido para muito pouco, quase nada”, acrescenta. Para criar esta pressão os prémios como o Estação Imagem são fundamentais – dão visibilidade ao tema e ao seu autor e, se tudo correr bem, abrem-lhe um espaço para a publicação de trabalhos semelhantes, um espaço que tem faltado na imprensa.

Mário Cruz  que tem visto os seus trabalhos circularem no estrangeiro, em jornais e revistas de prestígio e grande difusão como o New York Times e a Newsweek – é muito crítico em relação ao que se passa hoje em todo mundo com o fotojornalismo. E Portugal não escapa. “Hoje falta-nos tempo e espaço para fazer trabalhos como este dos talibés”, diz, explicando que, para realizar esta série em que esteve dois meses do ano passado no Senegal e na Guiné, teve de pedir uma licença sem vencimento na Agência Lusa, fazendo toda a pesquisa que antecedeu a viagem nos seus tempos livres. “Hoje não há praticamente oportunidades nenhumas para publicar trabalhos que fogem ao foco noticioso imediato, ao que acaba de acontecer. As pessoas perguntam-me porque não publico estes trabalhos em Portugal e eu respondo que em Portugal ninguém quer publicá-los. Ou ninguém quis até agora. Mas depois são estes trabalhos que ganham os prémios. Gostava que as pessoas se perguntassem, aqui e noutros países, porque é que não têm acesso a estas reportagens fora dos prémios.”

Para já, Mário Cruz tem uma lista de ideias para novos projectos, mas nada ainda na calha. Está a reservar o resto do ano para continuar a divulgação da série que dedicou às crianças escravizadas nas escolas onde deviam estudar o Corão. Está previsto publicá-la em livro, se a campanha de crowdfunding que deverá ser lançada para o efeito a partir de 10 de Maio for bem sucedida. “Um livro tem uma existência física, fica, pode passar de mão em mão, chegar a quem decide”, diz. “O livro guarda o testemunho do que aconteceu de uma maneira que a Internet, os jornais e as revistas não conseguem.”

Testemunhar, ainda que durante pouco tempo e com a possibilidade de virar costas quando quisesse, a vida dos talibés foi ainda mais “duro” do que esperava, e vezes houve em que “foi precisa muita força para não interferir, para não deitar a perder o que ali estava a fazer”: “Ter acesso àqueles lugares onde a cada minuto ocorre um crime contra os direitos humanos foi muito difícil, mas não tão difícil como resistir a fazer alguma coisa em determinadas situações. Nunca pensei ver e poder fotografar crianças acorrentadas e chicoteadas à minha frente. Não estava preparado para isso. Mas ali a minha arma não eram as mãos, era a máquina. Se eu tivesse feito alguma coisa tudo aquilo continuaria escondido – todas as pessoas com quem falava me diziam saber o que se passava com os miúdos nas ruas, mas não dentro das escolas.”

No final da conversa com o PÚBLICO, Aidan Sullivan, presidente do júri do Estação Imagem Viana 2016, confessa que, ao chegar à cidade minhota, não fazia qualquer ideia do que iria encontrar. O que encontrou surpreendeu-o. “Fiquei assombrado com que vi”, confessa. E quando os seus olhos se depararam com as fotografias de Mário Cruz não teve dúvidas. Nem ele, nem os restantes elementos do júri. “Percebemos que era um trabalho de classe mundial, extraordinário, assim que vimos as fotografias. Não apenas pela forma como as imagens foram criadas e pela sua qualidade estética, mas por criarem uma narrativa completa. São uma história que se desvenda perante nós. Tocou-nos a todos. Foi uma escolha unânime”.

Sullivan vê em Talibés, Escravos dos Tempos Modernos, um trabalho “envolvente”, “esmagador”, uma obra “provocadora para as consciências": "Isto é escravatura moderna, são crianças mantidas em condições brutais”. E é, também, “um trabalho sobre a necessidade de procurar histórias que não conhecemos, escondidas em zonas do mundo mantidas na sombra”.

As fotografias de Mário Cruz tornaram-se ainda mais interessantes para Sullivan quando este conheceu a história completa, a de um jovem fotógrafo que pediu uma licença sem vencimento para fazer um trabalho que sentiu obrigatório. “É este tipo de coisas que separam os bons fotógrafos dos grandes fotógrafos”, defende. “O querer mesmo fazer uma história e fazer o que for necessário para o conseguir. Não só aplaudo, como encorajo este tipo de paixão. Estou certo que o Mário Cruz terá um grande futuro”.

Confrontado com as críticas do fotojornalista premiado às dificuldades existentes para publicar trabalhos que fujam ao “foco noticioso imediato”, Sullivan concorda que essa é uma realidade actual. “Pode-se fazer uma auto-publicação na internet, e para isso não é necessário o Times ou o New York Times. O grande problema é encontrar financiamento, até porque muitas publicações não têm orçamento para este tipo de trabalhos”. Ainda assim, o vice-presidente da Getty Images não cede ao pessimismo. “Os melhores fotojornalistas são pessoas muito inteligentes e encontrarão maneira de contornar essas dificuldades. É isso que os torna diferentes, é isso que torna o Mário Cruz diferente. Agora, haverá pessoas à volta do mundo a ver o seu trabalho e saberão que ele é alguém em quem podem confiar. Ao ter feito isto, colocou um foco sobre mesmo. É assim que se progride nesta profissão. Constróis a tua própria sorte. Provas que consegues fazer”.

Bolsa para Bruno Simões Castanheira

Ao contrário do tema dos Talibés, o da crise dos refugiados não sai das notícias. Foi precisamente O Mapa dos Refugiados, retrato de uma ilha grega, Lesbos, valeu ao galego Gabriel Tizón o prémio da Foto do ano, que foi atribuído pela primeira vez nesta que é a sétima edição do concurso. Duas reportagens sobre a política nacional, Debaixo dos Holofotes, de Bruno Colaço, e José Sócrates, de Nuno Pinto Fernandes, conseguiram, nesta categoria, uma menção honrosa.  

A imagem mostra um mapa europeu. Polónia, Alemanha, República Checa, Dinamarca, França.  Gabriel Tizón estava “a caminhar por ali”, atrás daquele mapa desenhado em plástico num campo de refugiados em Lesbos, a ilha tornada símbolo da crise migratória provocada pela guerra na Síria e pela violência e convulsão política no Médio Oriente. “Era um mapa onde as pessoas tinham desenhado rotas a seguir quando da chegada ao continente [europeu]”, recorda Tizón ao PÚBLICO. Do outro lado do mapa, caminhavam refugiados. Tizón viu-os, disparou. “Senti imediatamente que estava a fazer uma imagem simbólica”, conta. “Mas ainda assim a imagem surpreendeu-me”. Porque viu depois a mão onde o nosso olhar se foca. “É uma figura de mulher, o que me parece importante neste contexto, e a sua mão está sobre um país chamado Alemanha, com o que ele representa para nós, europeus, e para os refugiados”.

Gabriel Tizón fora até Lesbos movido por um sentimento: “indignação”. Foi porque sentia que podia ser um deles. “O que me motivou e o que continua a motivar-me é ver o seu comportamento e o seu saber, é testemunhar o mal que estão a sofrer e o exemplo que estão a dar perante ele. Não sei se conseguiria comportar-me da mesma forma exemplar se estivesse na situação deles, fugido com os meus filhos de uma situação limite”.

Além de O Mapa dos Refugiados, distinguido com o prémio de Melhor Foto, Gabriel Tizón venceu a categoria Desporto, com Futebol Sem Comércio, registado na Guiné Bissau e no Senegal, e teve uma menção honrosa na categoria Vida Quotidiana com O Ritmo de Bafatá, reportagem registada em Dacar, a capital senegalesa. Tizón não partiu em busca daquele que é o outro perante o olhar ocidental.  “Independentemente da cultura de cada um, que temos que respeitar ao máximo para nos compreendermos, o que me interessa é sermos todos pais e todos sermos filhos, é todos sentirmos medo e alegria”. Tizón parte, muito simplesmente. Procura. “Em África, na Ásia ou na minha Galiza. Não tenho guião para o meu trabalho. O meu guião é deixar-me ir”.

Outro nome duplamente premiado foi Leonel de Castro. Douro Leste, sobre os migrantes de vários países de Leste que passam o fim do Verão nas vindimas do Douro, valeram-lhe o Prémio Noroeste Peninsular que tinha este ano como tema A Vinha e o Vinho.  E o fotojornalista da Global Imagens venceu também na categoria Artes e Espectáculo, com o trabalho Lab in Dança, sobre um projecto de inclusão de pessoas com deficiência  - os outros, entre nós - levado a cabo em Santa Maria da Feira.

O júri que inclui ainda João Silva, fotojornalista do The New York Times, Cheryl Newman, directora de fotografia do Telegraph Magazine; e Laurent Rebours, chefe de fotografia da agência Associated Press em Paris, atribuiu ao freelancer Nuno Fox o prémio em Assuntos Contemporâneos por Duas Vidas Numa Só, retratos de Vitória e Paulo, uma pessoa, duas identidades. José Carlos Carvalho, teve uma menção honrosa nesta categoria, pelo trabalho Aqui morreu uma mulher, sobre a realidade, bem presente na sociedade portuguesa, da violência doméstica.  

O mesmo José carvalho ganhou o prémio Estação Imagem na categoria Notícias, com Quem Ri Por último Ri Melhor, sobre a surpreendente corrente de esquerda que, no Parlamento, suplantou uma direita que tinha ganho as eleições. Já Gonçalo Delgado, da Global Imagens, venceu em Vida Quotidiana, com a reportagem O Inverno é Uma Casa às Costas, sobre os habitantes de Castro Laboreiro que ainda mantêm o hábito de mudarem de aldeia, das Brandas, ou Verandas, para as Inverneiras, consoante a estação do ano, acompanhando o gado. 

Na categoria Ambiente, Vlad Sokhin (Rússia/Portugal) foi o vencedor, com Águas Quentes/Warm waters, testemunho dos efeitos do aquecimento global na Oceania. E o galego Pedro Armestre (France Press) leva para casa uma menção honrosa pelo acompanhamento, em Dentro do Lume, do trabalho das brigadas florestais na prevenção dos fogos, em Espanha. Numa última categoria, Série de Retratos, o prémio foi atribuído ao freelancer Bruno Colaço, que, em Duas famílias; de Chernobyl para Portugal, retratou crianças daquela cidade ucraniana que passaram férias em Portugal ao Abrigo do projecto Verão Azul.

Como acontece todos os anos, o júri do Prémio Estação Imagem atribui ainda uma bolsa de dez mil euros para a realização, ao longo dos próximos doze meses, de um projecto fotográfico centrado num tema da região. E o escolhido foi, desta vez, o vencedor do Grande Prémio das edições de 2013 e de 2015, o freelancer Bruno Simões Castanheira, que vai trabalhar sobre os Lugares de Silêncio - Aldeias e Sítios do Parque Nacional Peneda-Gerês, na perspectiva da produção de um catálogo e de uma exposição para a edição de 2017.

Este sábado à tarde, pelas 15h30, é inaugurada, nos antigos paços do concelho de Viana, a exposição Filigrana - A Tradição Ainda É o Que Era resultante da bolsa atribuída em 2015 a António Pedro Santos. Segue-se, às 16h30, uma conferência do fotojornalista João Silva, do diário americano The New York Times, que mostrará algum do seu trabalho. Outro fotojornalista reconhecido, Christopher Morris, que tem no Museu de Artes Decorativas a exposição sobre o seu projecto Americanos dá uma conferência no domingo, às 11h30. O programa do Prémio Estação Imagem, que se tornou num verdadeiro festival, ao longo de cinco dias, inclui documentários e exibição de diaporamas sobre fotojornalismo internacional.

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