Tanta misericórdia já aborrece

A reforma da Cúria não é uma operação estética. Destina-se a dar um sinal concreto.

1. À saída de uma Igreja em Braga, um senhor, que eu não conhecia, veio directo a mim, indignado: eu já não posso com tanta misericórdia! Sem suspeitar o que dali podia vir, pedi-lhe alguma para mim. Explicou-se. Como bom e velho bracarense, sou católico, desde pequeno. Aprendi a doutrina na família e na igreja, onde também casei. Tenho filhos e netos. A minha mulher educou-os bem, raramente falto à missa e pertenço a várias confrarias.

Sendo assim, disse-lhe que não precisava da misericórdia de ninguém. Sorriu e acrescentou: sei quem é e conheço as suas ideias. Quero desabafar.

O Deus de Braga – disse-me – foi sempre um Deus medonho. A maioria da população vivia com medo do inferno. Do purgatório ninguém escapava. Esse Deus vigiava, dia e noite, as nossas acções. Na confissão era preciso prometer que não voltaria a cair naqueles pecados que estavam na lista dos mais vergonhosos. O propósito de emenda era a artimanha necessária para receber a absolvição.

Pela conversa, percebi que tinha andado no Seminário. Ele tinha verificado uma grave incongruência na Missa: do começo até ao fim, pedia-se perdão a Deus e aos outros, mas para ir à comunhão era preciso confessar-se, em privado, a um padre!

Observei-lhe que, na altura, a Missa era em latim e as pessoas para não perder o tempo aproveitavam para rezar o terço. Tive réplica imediata: agora, as pessoas podem saber que a Missa é o sacramento dos sacramentos, a realização mais bela da reconciliação, mas não serve de nada. É apenas um faz de conta ritual. O que realmente conta é o confessionário.

Este bracarense não é contra a confissão privada. Podem existir razões pessoais para o encontro, a sós, com um confessor. Ouvir e ser ouvido é uma exigência humana fundamental. Os psicólogos fazem o seu trabalho, mas não podem substituir o papel espiritual do sacramento da misericórdia, da esperança. Importa libertar a memória perdida nos labirintos do passado que assombra o presente e fecha o futuro.

2. Acabei por lhe dizer que continuava a não perceber a sua indignação com o Jubileu da Misericórdia. No começo da conversa até pensei que pertencia a esses grupos integristas e conservadores que não suportam as iniciativas do Papa Francisco. Um Ano de Jubileu da Misericórdia não me parece demais para limpar o sarro de séculos de um perverso deus do terror. Interrompeu-me: estou completamente de acordo com o Papa, mas já não aguento a ladainha da “misericórdia”, para tudo e para nada. Dentro de pouco tempo, vai ser integrada no beatério bracarense. Diz-se que a misericórdia não é para abolir a justiça, mas para a superar. Falam das “obras de misericórdia”, sete corporais e sete espirituais, como tínhamos aprendido na doutrina. Serviu de alguma coisa? Era a tabuada de catecismo.

Bergoglio, desde o começo do seu pontificado, mostrou que o seu adversário era a economia que mata, a idolatria do dinheiro, a globalização da indiferença perante um mundo onde se cava, dia-a-dia, um abismo entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres.

Não era conversa ideológica, como a direita gosta de sublinhar. O último número da revista Além-Mar [1] destaca que, no mês passado, a ONG Oxfam divulgou os últimos dados sobre a desigualdade. Nos últimos cinco anos, o património dos 62 multibilionários do planeta aumentou 44%. Simultaneamente, os rendimentos das camadas mais pobres da população caiu 41%. No ano passado, a riqueza acumulada por 1% da população mundial superou a dos restantes 99%.

O Sumo Pontífice, na Mensagem aos participantes na 46.ª edição do Fórum Económico Mundial, pediu aos responsáveis internacionais: “dêem vida a novos modelos empresariais que, ao promoverem o desenvolvimento de tecnologias avançadas, sejam também capazes de as utilizar para criar um trabalho digno para todos, apoiar e consolidar os direitos sociais e proteger o meio ambiente”.

3. A reforma da Cúria não é uma operação estética. Destina-se a dar um sinal concreto que só uma Igreja em reforma permanente poderá estar livre para ver o mundo a partir dos excluídos. As periferias existenciais deviam ser o centro das igrejas. Nesta opção, o Papa estava, apenas, a seguir a direcção que Jesus Cristo tomou há dois mil anos: descobrir a presença do Reino de Deus entre os excluídos, colocar o centro na periferia. Agora, porém, reconduzem-se as pessoas para dentro das igrejas. Não é uma Igreja de saída, mas de reentrada para a adoração da Reserva Eucarística, minando a simbólica da partilha de uma refeição. Jesus Cristo exposto nas vidas abandonadas na solidão, na doença, na miséria é substituído por algumas horas de adoração do Santíssimo exposto.

Observei-lhe que, na Igreja, há muitos carismas, muitas espiritualidades e nem tudo pode ser reduzido ao social. A mística não é abandono. Vê mais fundo e mais longe. Resposta: é com essas e outras semelhantes que se troca o Evangelho por uma colecção de devoções que Cristo não tinha nem recomendou.

[1] Além-Mar, Fevereiro 2016, p. 5

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