David Justino quer “desmitificar o conceito de ideologia”

Trabalhou com Marcelo, Durão e Cavaco, uma actividade política que sempre conciliou com a academia e garante que não só as duas situações são compatíveis, como a política tem de ter rigor, análise, estudo.

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David Justino e os seus anos com Cavaco: “Foram dez anos de trabalho altamente profissional” Manuel Roberto

Ao fim de dez anos a assessorar ou a aconselhar o Presidente da República, Cavaco Silva, tendo antes sido ministro da Educação de Durão Barroso e antes ainda porta-voz de Marcelo Rebelo de Sousa na direcção do PSD, David Justino lança na terça-feira a obra Fontismo. Liberalismo numa Sociedade Iliberal, editada pela Dom Quixote Leya.

O objectivo é potenciar a sua vertente de académico, vivida enquanto professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, especialista em sociologia e história económica, para fazer uma leitura histórica do pensamento político português no século XIX. O resultado são 459 páginas em que pretende “desmitificar o conceito de ideologia” e mostrar como ele “é positivo”. E define: “As ideologias são as matrizes culturais que orientam a acção.”

Fala da sua experiência política com à vontade. A actividade mais recente e ainda em curso é ser consultor do Presidente da República, Cavaco Silva. Há dez anos entrou em Belém como assessor, “a tempo inteiro”. Depois passou a consultor, tendo sido entretanto nomeado presidente do Conselho Nacional da Educação.

Sobre os seus anos com Cavaco diz que “foram dez anos de trabalho altamente profissional”, em que colaborou com alguém com “capacidade de planeamento muitíssimo boa”. Confessa que Cavaco era já para ele uma referência: “Tinha sido meu professor em economia a seguir a 1974, entrei no PSD por causa dele, mas nunca tinha trabalhado com ele.” Reconhece que o período a nível nacional em que a Presidência de Cavaco Silva decorreu “não foi fácil”, mas que este “facilitou”, pois é “muito conhecedor e preparado”, pormenorizando: “Por muito que uma pessoa critique ele tem muito sustentadas as posições que toma.”

Antes David Justino foi deputado (1999-2002 e 2004-2005), ministro da Educação de Durão Barroso (2002-2004) e porta-voz de Marcelo Rebelo de Sousa para a Educação entre 1996 e 1999. “Foi Marcelo que me empurrou para as áreas da educação, já tinha trabalhado sobre o tema, mas foram anos intensos em que o meu trabalho político foi dificultado por não estar no Parlamento”, conta.

Sobre o Presidente eleito sustenta que “é uma pessoa tecnicamente muito bem apetrechada, tem uma capacidade de trabalho incrível, tem experiência política que acumulou e que pode capitalizar”. E remata: “Sendo completamente diferente de Cavaco no estilo, é uma pessoa que pode exercer bem o mandato de Presidente.”

Os dois fatos
Licenciado em Economia, doutorou-se em Sociologia tendo como orientador Vitorino Magalhães Godinho. Foi, aliás, o único doutorando do historiador de referência dos Descobrimentos. A tese de Justino, intitulada Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810-1914, foi premiada e é considerada ainda hoje uma referência.

Assumindo que a sua obra académica é um misto de economia, sociologia e história, não deixa de ironizar sobre a sua dupla condição de político e académico: “Não preciso de mudar de fato para exercer as duas funções. Sou um académico que, como cidadão, tem direito a posições políticas.” Frisando ter apenas estado fora da Universidade entre 1999 e 2005, garante que “nem toda a produção académica é tão rigorosa quanto parece, nem toda a política é desprovida de racionalidade”. E defende que “a política faz-se do estudo e do rigor, isso qualifica a decisão política e isso obriga a ir à academia”.

Recusando-se a ver a política “como a forma de tornar racional o irracional”, insiste na ideia de que “toda a acção política ou é o resultado da análise rigorosa ou perde qualidade” e acrescenta que “a política tem que ser sustentada, cada vez mais os políticos são porta-vozes e depois há os estudiosos.” Aos políticos cabe “a decisão política de escolher entre opções sustentadas em análises e em estudos racionais”, advoga, e remata: “A decisão política, por si só, não existe. E a actividade e a investigação académica ajudam-nos a não nos deixarmos levar só pelo mainstream.”

Ideologia da obra pública
David Justino defende que “há sempre uma condicionante ideológica na decisão política”, mas “às vezes a ideologia vem tranvestida de pragmatismo”. Ainda assim, “mesmo nas situações mais pragmáticas, a condicionante ideológica está presente”, refere. Partindo desse pressuposto tenta, nesta obra, identificar “como se estruturou esse campo ideologicamente em torno das obras públicas”.

Contrariamente a nomes como Manuel Villaverde Cabral e José Miguel Sardica, considera que “não há desideologização com o fontismo. E afirma que o fontismo “não é uma ideologia, é um processo de reconfiguração da ideologia liberal” em Portugal, o qual “perdura desde a Guerra Civil, que tinha duas matrizes: a Ordem e a Liberdade”. Segundo Justino, “o que o fontismo introduz - e cuja existência é mesmo anterior ao fontismo e à regeneração - é o conceito de progresso, o qual acaba por ficar confinado à ideia de progresso material, daí a crítica de Garrett e de Herculano de que se ignorava o progresso moral”.

Assumindo que hoje não identifica o pensamento liberal com nenhum político português”, diz que “os princípios liberais estão diluídos à esquerda e à direita”. E explica que, “à esquerda, a liberdade é associada à igualdade”, enquanto, “à direita, a liberdade não pode ser posta em causa pela igualdade”.

Quanto à ideia de progresso, refere que ela “está diluída, quando se fala de progressistas identificam-se com a esquerda e a direita é considerada conservadora, mas a direita tem um conceito de progresso próprio”.

Lembrando que “o contexto hoje é diferente do século XIX”, diz que há ideias que se reproduzem, como o fascínio pelo fomento, pela obra pública”. Ora, segundo Justino, “o problema é quando o Estado quer ir além dos meios que tem”. E mais uma vez cita Anselmo de Andrade o último ministro das Finanças da monarquia, que em 1911 escreveu: “É de uma grande monotonia a nossa história financeira. Nas suas linhas gerais cifra-se em gastar mais do que se tem, fazer deficit e pagar mais tarde com empréstimos. Tal é o seu lacónico sumário.”

Uma citação que se aplica aos dias de hoje como ao final da monarquia e sobre a qual Justino conclui: “Foi isso o fontismo, falhou porque contraiu divida e faliu ao fim de 40 anos.” Um período de vida que é similar aos anos do regime democrático, observa, para advertir que “é inegável que os meios construídos pelo fontismo possibilitaram o desenvolvimento do país”.

Fazendo o paralelo com a actualidade, sublinha que “quando Cavaco Silva sobe a primeiro-ministro ninguém contesta as necessidades de obras públicas, o problema é definir até onde se pode ir.” E explica que “depois da fase de desenvolvimento das obras públicas com fundos estruturais feita por Cavaco Silva seguiu-se a fase com António Guterres, de que é o exemplo a Expo”, para insistir na necessidade de haver limites.

É essa noção de limite que leva a que relate na introdução do livro uma reunião de Conselho de Ministros do Governo Durão Barroso em que criticou a opção de obras. “A minha preocupação no Conselho de Ministros, que cito, era por que se queria atalhar a crise e criar emprego, por que se ia buscar o velho modelo.” E acrescenta que na altura apontou como alternativa um plano de obras para as escolas do primeiro ciclo em estado de degradação, um tipo de opção que foi adoptada por José Sócrates com a Parque Escolar.

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