O que torna um artista grande

Paris encontra um Sarmento como há muito não víamos: com uma fixação na figura feminina elevada ao paroxismo. Machismo? Não. Devoção. O prisioneiro, aqui, é ele.

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The Real Thing um altar familiar onde alguém guarda e homenageia os seus rostos e memórias de décadas: as mulheres
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Em 2001, ali mesmo, à entrada do século XXI, Julião Sarmento completou uma série de pinturas intitulada “What makes a writer great”. Dá-se que aquilo que torna um escritor grande é aquilo que torna qualquer criador grande: uma forma única de ressentir e transmitir o mundo. No fundo, o que torna qualquer criador grande é a capacidade que revele de tornar as suas idiossincrasias num filtro, uma espécie de lente através da qual nós, os outros, passamos também a ver. E a ver não apenas aquilo que nos foi mostrado, mas tudo – incluindo-nos a nós, sempre.

“A imensa maioria dos homens artistas concentraram o seu interesse em figuras femininas, quer se tratem de cânones estéticos do mundo antigo, do culto da virgem e santas da Idade Média, dos mais enigmáticos retratos renascentistas de mulheres [… ou da] persistência do nu feminino no período moderno”, escreve Ami Barak no catálogo de “La Chose, Même”, a exposição dedicada a Sarmento que comissariou para o Centro Calouste Gulbenkian, em Paris.

Nesta exposição, com obras que percorrem um arco temporal de 1973 a 2013, Barak, director da Associação Internacional dos Curadores de Arte Contemporânea, diz ter-se preocupado em falar com as gerações jovens demais para terem estado com este artista na Documenta de Kassel (1982 e 1987) ou na Bienal de Veneza (1997), gerações que não viajam facilmente por circuitos internacionais como os de Londres, Nova Iorque ou Los Angeles.

La Chose, Même concentra-se e eleva ao paroxismo um Sarmento já raramente visto: um artista eternamente dedicado à figura da mulher, “esse obscuro objecto de desejo”, como Barak escreve no catálogo.

Será casual a referência a Buñuel nestas palavras? Talvez sim. Talvez seja pura conveniência expressiva. Ou talvez não. Na verdade, tal como nos filmes de Buñuel, também na obra de Sarmento a mulher pode insinuar-se como presença submissa, vestida ou despida o gosto e vontade de outro. Mas não será um logro. Vendo melhor, não será ela a figura dominadora numa relação de tensões em que, em última análise, o artista se revela, afinal, como a figura subjugada?

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Não será ele, o homem, o prisioneiro do desejo? São imagens fugazes e incompletas, fragmentos, pequenos estilhaços de nada a não ser da vontade que move o artista e lhe é devolvida por essas presenças elusivas, em fuga

É que é sistematicamente ele quem persegue e tenta capturar sem chegar a agarrar mais do que imagens fugazes e eternamente incompletas, fragmentos, vislumbres, pequenos estilhaços de nada a não ser da vontade que o move e lhe é devolvida por essas presenças elusivas, constantemente em fuga. Não será antes ele, o homem, o verdadeiro prisioneiro de sucessivas histórias de desejo?

Desejo, pois – se há muito que a desmontagem de uma alegada misoginia ou machismo na obra de Sarmento concluiu que o está em causa na sua obra é “a fisiologia do desejo”, como escreveu um dia Nuno Crespo, parece ainda necessário confrontar o desajuste no olhar que encontra ódio, repulsa ou desconsideração onde existe acima de tudo fascínio, devoção e reverência. Se não, veja-se a peça a que a exposição vai buscar título: The Real Thing (2010).   

Em The Real Thing, Sarmento concentra 121 fotografias de mulheres. Estão dispostas sobre uma longa mesa de madeira crua, ângulos agudos e linhas rectas. Há pouco a dizer sobre este elemento frigido e anódino. A não ser que apesar dele – ou contra ele – o ambiente é inusitadamente doméstico. Cada fotografia surge carinhosamente emoldurada, como num sideboard de sala de estar – uma espécie de altar familiar onde alguém guarda e homenageia os seus rostos e memórias de décadas.

Malabarismos com a libido
Mulheres – sobretudo actrizes: Angelina Jolie, Megan Fox, Chlöe Sevigny, Jennifer Aniston... Ícones de beleza do imaginário popular contemporâneo. Figuras endeusadas pela máquina de sonhos de Hollywood. Objectos de idolatria, mais do que de amor, talvez. Porém, entre elas estão os rostos e corpos de pelo menos duas representantes da esfera de afectos pessoais do artista: a sua ex-mulher Helena Vasconcelos – presença regular em pinturas e fotografias dos anos 1970 e 1980 – e Isabel Sarmento, a sua mulher desde então e mãe dos seus dois filhos.

Julião Sarmento, o homem e o artista, são uma e a mesma pessoa? Há pelo menos aqui uma persona subjugada ao fascínio, ao desejo e ao amor por estas mulheres. Aliás, é precisamente a imagem do artista que um olhar atento encontrará no reflexo especular de uma das fotografias – um vislumbre, também ele; pouco mais do que a sugestão de um rosto eclipsado por detrás de uma máquina fotográfica.

Estamos, parece, num quarto de dormir, talvez num quarto de hotel. Estão lá uma cama e uma parede espelhada. Em pé, a olhar-nos de frente, está uma mulher de peito descoberto, talvez nua. Dele, o homem, vemos a nuca e os ombros, também descobertos. Talvez esteja também nu. Parece estar a retratar a mulher com quem acaba de – ou se prepara para – dormir. Mas não é ele nem o que faz que importa. Interessa ela, a intensidade da sua postura.

Thomas a retratar Veruschka em “Blow Up”, de Antonioni. Em 1966, foi considerado um dos momentos mais sensuais de sempre do cinema. Pensar em machismo ou misoginia leva a crer que essas décadas de libertação sexual ameaçam agora implodir num novo tipo de puritanismo, num politicamente correcto à luz do qual o desejo heterossexual se torna aceitável apenas caso exposto por uma mulher.

Referindo-se à representação do corpo feminino ao longo da história da arte, Barak diz que Sarmento “faz de si um caso singular, num século que se desviou do real”.

Ao longo do século XX, “a influência da arte primitiva, a descoberta do inconsciente pela psicanálise, o valor intrínseco da cor e a da expressão que se dissocia da realidade do sujeito e, finalmente, o desenvolvimento das técnicas fotográficas tornaram todos os esforços de precisão supérfluos”. Por entre a vasta linhagem de artistas dedicados à representação da mulher, “Julião Sarmento escreve a sua própria fórmula, a fazer malabarismos com a libido através do nosso olhar numa subtil forma de transferência que expõe o real sem o desnaturar”.

Malabarismos. Como aquele por detrás dos mecanismos de “Parasite”, o filme de 2003 em que Sarmento regista o “striptease” de uma jovem mulher frente ao plano fixo de uma câmara.  

Dissemos “striptease” – deveríamos falar antes numa coreografia, um bailado em que uma mulher se despe e depois se veste ao som de “A Dança dos Cavaleiros”, de Prokofiev.

Grandiosa e sombria, A Dança dos Cavaleiros é o tema do baile do primeiro acto de “Romeu e Julieta”, aquele em que os homens Capuleto apresentam o poder da sua família. Julieta entra a meio, num trecho musical mais leve e harmonioso que pontuará as suas presenças – o estereótipo de uma suposta delicadeza e fragilidade feminina. De forma alguma o tipo de energia que Sarmento procura na mulher que põe em cena em Parasite.

Primeiro há o corpo – de linhas redondas e intensamente carnais. Depois há o nu – explícito e frontal, sem máscaras. E há, por fim, a absoluta intencionalidade e rigor de cada gesto com que somos seduzidos, quase hipnotizados.

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A estranheza dos tempos e movimentos com que nos confrontamos resulta de uma estratégica extraordinariamente simples (tendo em conta o efeito): o filme é apresentado a correr ao contrário, do fim para o início – é isso que distorce, amplifica e parece prolongar inexplicável e bizarramente todos os requebros, ângulos e torções do corpo, das roupas, do cabelo...

“Este visionamento revertido incita o espectador a prestar mais atenção àquilo que inicialmente se destinaria apenas a excitar os seus sentidos e aumentar a sua adrenalina. Um tipo diferente de vigilância é assim activado e demonstra o carácter incrivelmente ‘voyeurístico’ de tal empreendimento”, escreve ainda Barak.

O curador propõe que consideremos a alteração de posições assim conseguida: “Se acreditarmos ou descobrirmos que a mulher que se está a vestir sabe qual a versão final [do filme] a oferecer ao espectador, então, ela passa do que é observado ao que observa, e os papéis mudam. Somos forçados a aceitar ser parte de um mecanismo, e que já não estamos numa relação unidireccional entre observador e observado, mas numa situação em que estamos constantemente colocados ao centro.”

Barak não termina a sua análise sem se debruçar sobre a escolha do título. Sobre como, através da origem clássica da palavra, sabemos que parasita é um organismo vivo que vive do que retira a outro, ao qual nada devolve e o qual muitas vezes prejudica. É verdade. E nesse caso, parasita seriamos nós, a observar esta stripper. No entanto, sabemos também que certas formas de parasitismo são úteis ou até mesmo essenciais à vida, criando cenários de coexistências complexos. Na verdade, como aquele em que nos envolvemos como espectadores de “Parasite”.

“O espectador do filme de Sarmento beneficia inegavelmente da sensualidade do espectáculo erótico, mas, graças à inteligente reversão operada pelo artista [nas imagens], os benefícios são igualmente partilhados: […] a disposição posta em acção pelo artista faz com que saibamos que a stripper sabe que nós sabemos; e isto muda tudo.”

Muda tudo neste trabalho. Explica muito do que está em jogo na obra deste artista.

La Chose, Même fica em exibição até 17 de Abril. A 31 de Março o centro inaugura uma peça permanente de Sarmento, uma escultura feita em colaboração com o designer de moda Filipe Oliveira Baptista – Filipe Oliveira Baptista veste “Marie”, uma mulher.    

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