Nada mais a dizer

Aquando da sua estreia em Locarno, No Home Movie parecia marcar um fim de ciclo. Ficará como o último filme de Chantal Akerman.

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“Depois deste filme, não há praticamente mais nada a dizer.” “Este filme” chama-se No Home Movie e as palavras são da sua autora, Chantal Akerman, ditas em entrevista ao PÚBLICO pouco depois da sua estreia mundial no Festival de Locarno.

Menos de dois meses depois de Chantal as dizer, sabemos da sua morte, aos 65 anos – e pelo meio do inevitável resumo de uma obra, um olhar e uma carreira singulares, é arrepiante ter de levar estas palavras à letra. Mesmo que já então se sentisse qualquer coisa de “ponto final” em No Home Movie, filme intensamente pessoal que parecia assumir-se como síntese temática e formal de toda a sua obra, ainda por cima acompanhado por I Don't Belong Anywhere, excelente documentário de Marianne Lambert que propunha uma introdução atenta a essa mesma obra.

Em No Home Movie, Chantal Akerman faz uma espécie de “luto público” da sua mãe, Natalia, acompanhando os últimos meses da sua vida através de imagens rodadas durante as suas visitas irregulares à sua casa de Bruxelas. O filme coloca a nu a importância fulcral de Natalia para o cinema de Chantal: uma mulher cuja experiência como sobrevivente de Auschwitz e como âncora familiar em Bruxelas “perseguiu” sempre a filha, sempre em viagem para fugir da sua presença mas sempre regressando para nela se reencontrar. É um centro de gravidade artístico de que a própria realizadora admite só ter tido consciência mais tarde. E No Home Movie transportava em simultâneo algo de “exorcismo”, “reconciliação” e “apaziguamento” da relação entre Chantal e Natalia.

Akerman admitia ao PÚBLICO que No Home Movie era, em termos pessoais, muito mais “rente ao osso” do que obras anteriores. Isso tornava, também, muito mais complicado cumprir os necessários “deveres promocionais” exigidos por uma estreia num festival de primeira categoria, complicado por uma reacção agressiva ao filme. No final da primeira projecção de imprensa em Locarno, No Home Movie foi recebido com vaias, e bastantes críticos pouco impressionados com o filme questionavam se a sua presença a concurso não teria mais a ver com a reputação autoral da realizadora do que com a qualidade intrínseca do filme. A própria cineasta admitia não gostar de ver o filme em competição; chamava-lhe “absurdo e irónico”, mas cedera aos argumentos dos responsáveis pelas vendas internacionais do filme.

Percebia-se, no entanto, como era difícil para Chantal Akerman falar de No Home Movie, era devastador ver-se assim exposta a si própria ali num grande ecrã. Fazer da morte da sua mãe um filme era, como nos disse, “a única forma de sobreviver” ao impacto emocional do acontecimento (como se o próprio processo de criação fosse um refúgio ou um esconderijo), mas ao mesmo tempo tornava insuportável mostrar o filme e falar dele. Chantal quis fazer a entrevista do PÚBLICO a meias com Marianne Lambert – como se a presença da amiga e colaboradora lhe desse uma possibilidade de resguardo – mas nunca tirou os óculos escuros. Respondeu a algumas das perguntas com a voz embargada, pausava regularmente para não deixar a emoção dominá-la. E, terminado o “tempo regulamentar”, perguntou a Marianne: “não podes ficar comigo para a próxima entrevista?”.

Mais tarde, soubemos que Chantal fez mais uma ou duas entrevistas nessa manhã mas acabou por cancelar todas as restantes marcações. E sempre que falou de No Home Movie, fê-lo sublinhando a dificuldade de o fazer: fazia questão de explicar que não “decidira” fazer um filme sobre a morte da mãe, mas que a situação se lhe impôs durante o processo de “desbaste” e organização das imagens que filmara ao longo de anos, o “peso” do filme apenas se tornou aparente uma vez terminado.

Em Locarno, enquadrado pelo documentário de Marianne Lambert – encomendado pela Cinemateca Belga como parte de uma série sobre cineastas nacionais – No Home Movie sugeria um fim de ciclo, um momento de pausa e ponto da situação para Chantal Akerman. De algum modo, ela tinha consciência disso: “depois deste filme, não há praticamente mais nada a dizer”, disse-nos. Mas nunca pensámos ter de levar essas palavras à letra.  

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