Micro-cérebros artificiais serviram para testar substâncias neurotóxicas

Cientistas desenvolveram mini-estruturas com neurónios, células de vasos sanguíneos e outros tipos de células que se organizaram imitando um micro-cérebro humano. Estes organóides poderão servir para testar toxicidade de várias substâncias.

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Organóide visto ao microscópio: neurónios a verde, células da glia a vermelho e núcleos celulares a azul Michael Schwartz/Universidade do Wisconsin

Medicamentos, aditivos alimentares, poluentes, estamos rodeados por substâncias artificiais que interagem connosco. Algumas delas podem ter efeitos negativos na saúde. Uma das formas de se compreender esses efeitos é testá-las em células, em animais, e finalmente em ensaios clínicos em pessoas, no caso dos fármacos. Mas muitas vezes esses processos são custosos e têm limitações. Por isso, uma equipa de investigadores, que inclui um português, desenvolveu organóides a partir de células estaminais humanas que imitam parte da complexidade do cérebro humano. Com essas estruturas, os cientistas conseguiram identificar quase sempre a neurotoxicidade de várias substâncias, mostra um estudo publicado ontem na revista “Proceedings of the National Academy of Sciences”.

O artigo começa por explicar as limitações actuais dos modelos usados para testar os fármacos. “As taxas de sucesso da aprovação de fármacos estão a diminuir apesar de haver mais investigação e se gastar mais dinheiro no seu desenvolvimento, e os ensaios clínicos em pessoas muitas vezes falham devido à toxicidade que não tinha sido identificada durante os testes em animais”, explica o artigo. “Somando a isso, a maioria dos químicos produzidos na actividade comercial ainda não foi avaliada rigorosamente para testar se são seguros.”

Medicamentos, aditivos alimentares, produtos cosméticos, pesticidas, químicos produzidos pela indústria, são algumas das substâncias que levantam preocupações sobre os seus efeitos na saúde mental. “O cérebro humano é particularmente sensível a agressões tóxicas durante o desenvolvimento e no início da infância, e há uma preocupação cada vez maior entre a ligação de problemas de neurodesenvolvimento e a exposição a químicos que existem no ambiente”, lê-se ainda no artigo.

Para contornar as limitações dos actuais modelos que são usados para testar a neurotoxicidade, a equipa de Michael Schwartz, da Universidade de Wisconsin, em Madison (EUA), criou organóides com diferentes tipos de células humanas presentes no cérebro.

“Estes modelos de tecidos neuronais capturam uma complexidade muito maior do que aquela que se encontraria numa única camada de células [neuronais]”, explica Michael Schwartz, citado num comunicado do Instituto de Investigação Morgridge, em Madison, onde também trabalha. “Além disso, eles também imitam a fisiologia humana, e deverão ser mais relevantes para prever a toxicidade do que os modelos animais.”

Estes organóides foram criados de uma forma engenhosa. Os cientistas usaram uma matriz de gel onde colocavam as células, todas elas produzidas a partir de células estaminais humanas, que durante o desenvolvimento do embrião têm a capacidade de se diferenciar em diferentes tipos de células.

Primeiro, os investigadores colocaram células progenitoras de células nervosas, depois de células vasculares – que formam os vasos sanguíneos –, e finalmente colocaram células progenitoras da glia, um tecido que dá suporte às células nervosas. Esta sequência imitou o que se passa durante o desenvolvimento embrionário, em que os tecidos vão sendo construídos passo a passo. Ao fim de 21 dias, os organóides tinham uma grossura que ia de 50 micrómetros no centro até mais de 350 micrómetros na periferia (1000 micrómetros é um milímetro).

Depois, começaram os testes. A equipa aplicou 60 substâncias químicas diferentes nos organóides, em que uma parte delas era neurotóxica e a outra parte não era. De seguida, foi analisar as alterações na actividade genética que surgiam nas células de cada organóide submetido a uma dada substância. Os cientistas desenvolveram assim um perfil da reacção dos organóides às substâncias tóxicas e inócuas.

Desta forma, a equipa – que inclui o investigador Vítor Santos Costa, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que trabalha em programação e em bioinformática – criou um programa de computador que permite prever a neurotoxicidade de uma substância. Em teoria, este algoritmo, ao analisar a actividade genética de um organóide após este ter sido submetido a uma substância, deveria conseguir identificar se aquela substância era ou não neurotóxica. Para testar este sistema, os cientistas aplicaram nos organóides dez substâncias em que cinco eram neurotóxicas. Depois do programa ler os resultados da actividade genética dos organóides, classificou correctamente nove das dez substâncias quanto ao seu efeito neurotóxico.

Este tipo de modelo ainda é experimental, e a própria equipa defende que é necessário aperfeiçoá-lo para ter em conta mais características do cérebro, como a barreira hematoencefálica que impede muitas substâncias de passar do sangue para o tecido nervoso.

Ainda assim, Michael Schwartz está feliz com o resultado. “O facto de podermos aplicar um algoritmo que consegue aprender e alcançar uma precisão de 90% numa fase tão inicial é fantástico”, diz. “Os testes actuais de toxicidade usam estudos multigeracionais com ratos que custam cerca de um milhão de dólares por cada substância química. Por isso, precisamos de uma técnica de alto rendimento para testar estes compostos, perceber quais são os maus da fita, e a seguir concentrar-nos nos bons usando métodos mais tradicionais.”

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