Hermès e o novo homem

Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem.

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Há uma caneta de ponta fina a aproximar-se de um dos preciosos lenços carré da Hermès. Cai sobre a seda tingida à mão e, sem hesitações, risca-a. Está feito. Um peso de metal mantém a vítima hirta para o próximo passo. Ludovic desenha uma linha, cingido à régua, e define o ponto de corte. As mãos experientes do costureiro da Hermès procuram agora a tesoura. Corta, a olho, entre as panteras desenhadas no carré. É um aparente sacrilégio, este ataque a uma das mais emblemáticas peças da maison francesa. Mas na verdade este risco, e este corte, simbolizam a Hermès. E em parte a viragem actual na moda masculina.

Tudo isto acontece numa sala dos Ateliers Hermès, num de vários edifícios da casa de luxo que ocupam quase um quarteirão da comuna de Pantin. Ficam tão perto do Parc de la Villette que não parece que estamos para lá da fronteira oficial de Paris. Mas, como se prova na sala onde funciona o atelier de camisas à medida, ultrapassar limites não é coisa rara na Hermès.

Num desses prédios, branco e indistinto, estão Ludovic, Liliane, Pierre, Sabine, Sophie ou Nadia — alguns dos 11 nomes de bastidores que criam obras únicas para clientes únicos num atelier que partiu de uma ideia de Véronique Nichanian, uma das únicas mulheres a dirigir linhas masculinas ao mais alto nível da moda parisiense. Homens de todo o mundo — e, por vezes, também mulheres, mas lá iremos — escolhem colarinhos, punhos, tecidos ou lenços, botões e suas casas para terem uma camisa perfeita e só sua. Transformam-se peças clássicas em camisas sérias ou em peças extravagantes para homens que têm o estilo como prioridade — e eles são cada vez mais, sobretudo nas grandes cidades do Ocidente e do Oriente.

É um serviço procurado em todo o mundo mas que só está disponível a partir de 11 das lojas Hermès no globo. A mais próxima de um cliente português é mesmo a do centro de Paris, onde iremos a seguir nesta curta viagem pelo longo caminho que a moda masculina fez nos últimos anos.

Vivemos um momento em que se fala de “menaissance”, a junção dos termos ingleses para “homens” e “renascimento”. A moda de homem está a crescer, ou mesmo a renascer, pulsante, e o interesse sobre ela também. Eles compram mais, os designers desenham mais para homem, as grandes marcas abrem lojas só para eles, a imprensa dedica-se-lhes, os blogues multiplicam-se e as maisons clássicas posicionam-se com a segurança de jogar em casa num mercado que há muito conhecem. A Hermès, fundada em 1837 e que se mantém maioritariamente familiar, é conhecida pelas raras malas Birkin, pelos lenços carré, pelos perfumes, relógios e pela moda desenhada no passado recente por nomes como o exuberante Jean Paul Gaultier ou o discretíssimo Martin Margiela. Mas também por estes serviços customizados, à medida, só para eles.

“Há muitos anos tinha muitos actores, gente do cinema, cantores que me pediam para desenhar coisas únicas e especiais. Algo que fiz”, conta à Revista 2 Véronique Nichanian, que tem um cargo com um título de peso estratosférico — é a directora artística do universo masculino da Hermès e está há mais de 25 anos nesta maison que começou como uma casa de arreios para carruagens. “E um dia disse a mim mesma que seria muito interessante fazê-lo também para um senhor não conhecido mas que tinha anseios, sonhos — e meios”, reconhece. “Criei os ateliers de camisas, de malhas, de pele, para realizar encomendas especiais e excepcionais. São as encomendas particulares — o luxo está aí. Não é só poder pagar, é poder fazer coisas únicas.”

O seu quarto de século na moda masculina da Hermès — “reivindico-o”, ri-se —, nada comum em cargos que tendem a ser tão efémeros quanto as chamadas “tendências”, dá-lhe um posto de observação especial sobre a masculinidade.

“O meu trabalho é como um estudo sociológico, é a evolução dos homens, dos seus desejos”, explica na sala no topo do edifício de esquina da Rue do Faubourg de Saint Honoré. “Em 20 anos, vi os homens mudar, refinar-se, sofisticar-se no bom sentido do termo — sem preciosismo. A dar mais atenção a coisas essenciais na escolha do vestuário que constituam a sua maneira de ser, que signifiquem algo e não uma vida social, uma posição social. E não só no mundo profissional, mas em geral. Estão talvez mais atentos ao seu corpo, ao seu físico. Usam cor ou peças diferentes, vejo um misturar de coisas que são do sportswear e acho isso muito estimulante porque me interesso muito pela inovação, pelas novas tecnologias e novas fibras.”

Formada em Paris e com um percurso que começou no masculino italiano da Cerruti, chegou à Hermès como directora artística do pronto-a-vestir masculino em 1988. A pesquisa de materiais é um dos seus traços distintivos. Acredita que, da borracha ao neoprene passando pelo papel, “é um terreno de experimentação sem fim e que tem ainda muitas, muitas coisas a dizer aos homens”. No seu escritório, com as paredes brancas e luz natural, há grandes boiões de vidro, como os das antigas farmácias, cheios de mechas de tecidos coloridos. Uma parede junto à secretária assume “Je Suis Charlie” num papel afixado entre amostras de tecido, papéis ou coisas “ternas e inspiradoras”. Uma jarra transborda de frésias brancas frescas. Fala do homem desafiante que é o cliente Hermès, impossível de definir numa só descrição, e da aliança entre os valores “ancestrais da marca com a modernidade, inovação, novos fios têxteis, novas tecnologias e novos tecidos” numa “mistura que se parece com a mescla da sociedade de hoje, de cores de pele, etnias, culturas diferentes”.

A paisagem social mudou, o homem mudou e depois tudo passa à costura e aos ateliers. O serviço sur-mesure das camisas e fatos Hermès remonta a 1991 mas, em sintonia com a sofisticação e emancipação do gosto masculino aliado ao aumento da procura, foi muito mais recentemente, em 2011, que passou a estar disponível para todo o vestuário masculino da marca, explica à Revista 2 a coordenadora do Atelier des Chemises, Wedad Arfa. 

Em 1998, a moda masculina representava 38% do mercado total de vestuário; em 2013, o número subiu para os 42%, segundo a consultora internacional Euromonitor. “Historicamente, a moda tem sido o domínio da roupa feminina”, atesta Dylan Jones, editor da GQ britânica, ao site de referência Business of Fashion. O ritmo das colecções e tendências no mercado masculino era mais lento, as “mudanças muito conservadoras” e tudo parecia uma espécie de segunda liga, prossegue Jones, que também é o presidente da semana de moda London Collections: Men, fundada apenas em 2012 apesar da ligação histórica de Londres à alfaiataria. O english gentleman veste-se há séculos em Saville Row, mas o mercado só agora se agitou o suficiente para lhe criar uma montra oficial. Ainda mais fresca é a New York Fashion Week: Men’s, nascida em Abril para acompanhar as cidades-epicentro do sector — Milão e Paris.

Nos últimos dois anos, o crescimento continuou. As vendas mundiais de roupa de homem aumentaram 4,1%, valendo 91 mil milhões de euros. É um número que tem de ser lido a par dos do gigante feminino — a roupa para mulher vende sempre mais, segundo a consultora Euromonitor, mas cresce menos. No mesmo período, cresceu 2,8% para um valor de 134 mil milhões de euros. Olhando mais para a frente, a força do mercado de moda de homem não deve parar: espera-se que nos próximos dois anos aumente 8,3% e que o seu valor atinja os 98 mil milhões de euros em vendas. “O crescimento futuro deve ser conduzido pela Ásia-Pacífico”, diz Magdalena Kondej, da Euromonitor.

No atelier de camisas da Hermès, essa segmentação é visível na duplicação do número de pessoas da equipa nos últimos anos e nos armários que pontuam a sala branca de janelas altas e vidros foscos. No meio da austeridade laboratorial das mesas de trabalho há um armário para os clientes japoneses e franceses, outro para americanos, chineses e para Hong Kong, ainda um outro para o Dubai.

Tanaka. Fan. Guillaume. Yamamoto. São os arquivos por apelido onde se guardam os dossiers de todos os clientes, explica-nos Wedad Arfa, mensurados a partir de uma primeira marcação. Naquelas pastas está tudo sobre a sua vida Hermès e, em parte, sobre a sua morfologia. Todas as medidas e também todas as encomendas, para facilitar não só a recuperação de uma velha compra mas também a coordenação de uma nova — se monsieur já tem há anos a camisa xis, o futuro fato poderá ser da cor ípsilon.

Nessas “consultas” são registadas 13 medidas diferentes do cliente, tantas quantos os diferentes punhos disponíveis (só colarinhos há 14). Botões exclusivos que desenham em linha um H de Hermès, com ou sem monograma bordado à mão, 1500 tecidos franceses ou italianos à escolha. Pedaços desses tecidos são guardados na pastinha do cliente durante dez anos para que se possam reparar os colarinhos ou os punhos, mais expostos à passagem do tempo.

Como os homens são consumidores de maratona, as peças querem-se duráveis, com potencial de herança, que possam “atravessar o tempo”, como poetiza Véronique Nichanian. “Um bom pullover que se guarda durante anos, um blusão de pele que se conserva. Um amigo disse-me um dia: ‘Tu és uma abrandadora do tempo.’ É um dos mais belos elogios que me fizeram e procuro inscrever de facto um outro tempo” na moda — um tempo contemplativo e resistente.

O processo demora meses — uma a duas semanas para criar a tela-molde, depois quatro a seis semanas para terminar a camisa de algodão ou seis a oito semanas para finalizar uma de seda, mais uma a três semanas para a entrega ao cliente em qualquer parte do mundo. Pelo meio há provas, lavagens para que a camisa nunca, nunca se altere, ou medições minuciosas.

Nadia mede uma camisa que parece estar pronta e aponta numa ficha as distâncias em milímetros entre costuras e punhos, por exemplo. Noutra mesa cosem-se as margens das casas dos botões, abertas à mão por um cinzel que golpeia de uma vez só um virginal tecido branco. Noutro posto de controlo, um fio azul está a mais na trama alva de algodão. Uma pinça ou alfinete retira-o de cena.

Tudo isto parece anacrónico na era da moda rápida e da reprodução instantânea. “Na Hermès temos um tempo diferente”, frisa Véronique Nichanian. “O luxo está aí. O tempo de fazer bem as coisas para construir um saco, uma mala de viagem, um lenço de primeira qualidade, uma peça de vestuário — a partir do momento da escolha do fio têxtil, da tecedura, do desenho do tecido para realizar essa peça levo tempo para fazer exactamente o que sonho para a Hermès.”

Pierre costura à máquina um colarinho, ponto a ponto e tão lentamente que a habitual canção mecânica martelada das máquinas de costura não se ouve. É um dos raríssimos momentos em que há algo automático envolvido na confecção orgulhosamente artesanal. Nem são usados computadores. O resultado final e a vontade e possibilidade de obter estes produtos alinham-se com os seus preços. Ludovic continua de volta dos carré que serão uma camisa felina, estuda alinhamentos — as costas do animal vão ficar nas mangas. Há sete anos na marca, amanhã poderá fazer outra coisa qualquer no atelier. Pede-se-lhes “muita versatilidade”, explica Wedad Arfa.

São dez ou 12 horas para fazer uma camisa de algodão, ou 17 horas se for uma camisa de seda. Uma camisa simples custará cerca de 590 euros, uma de seda pode custar entre 800 e mil euros, a que acresce o preço dos cinco carré usados para a fazer (cada um com preços a partir dos cerca de 250 euros).

“Excepcionalmente, para os bons clientes”, diz Arfa, “há mulheres que têm camisas sur-mesure Hermès”. “As que vêem as camisas dos maridos”, exemplifica, notando o caso recente de “um casal que escolheu os mesmos carré” para camisas a condizer. A própria Véronique Nichanian recebe-nos no centro de Paris com as suas sandálias e calças cigarrette pretas e uma camisa de seda com tons verdes e brancos. Tudo “à moi”. Como quem diz: peças que desenhou para as colecções de homem. “Visto-me quase essencialmente em versões mini das minhas criações. Eles sabem o meu tamanho”, sorri.

Os peritos e quem trabalha no sector — e mesmo o consumidor mais distraído que nota apenas que o espaço para homem nas lojas de moda rápida aumentou — identificam uma espécie de “oscilação cultural” que fez com que mais homens invistam na sua aparência. Fala-se do advento do metrossexual há quase duas décadas, da influência de séries de TV elegantes como Mad Men, do contágio das redes sociais, de blogues como o Sartorialist, das políticas de género cada vez mais variadas, abertas e miscigenadas. E de millennials, os nascidos entre finais de 1980 e inícios de 2000, uma geração flexível que se destaca em trabalhos criativos ou nas empresas tecnológicas e que não vive vidas binárias lazer/trabalho. As consultoras dizem que eles, os “yummy” — o acrónimo brincalhão de “young urban male” — gastam muito mais com roupa, e em roupa com estilo.

É tudo “muito mais interessante do que quando existia o ditado de fatos clássicos durante a semana, jeans para o fim-de-semana. Esta forma de fazer zapping no vestuário para ter uma identidade própria, e uma mensagem, é apaixonante”, entusiasma-se Véronique Nichanian. 

Que, para o stylist português João Pombeiro, se vê na silhueta e nas peças, que também já não são assim tão binárias, e que alimentaram em parte esta emancipação fashion do homem. Skinny jeans, casacos de pele de motoqueiro, camisas compridas. São peças unissexo, tal como certas silhuetas mais soltas, como as praticadas pelos portugueses Marques’Almeida, que se prestam para o menino e para a menina. “Tivemos homens a comprar os nossos vestidos-T-shirt para usar como uma T-shirt. E os nossos calções para mulher eram bastante boyish”, disse à Revista 2 em Junho Paulo Almeida.

Pombeiro, ex-bailarino clássico, é responsável pela construção dos looks de várias actrizes portuguesas, faz styling para produções de moda em revistas como a Edit ou a Bless ou para campanhas de criadores como Luís Carvalho e Nuno Baltazar. Há qualquer coisa de rock’n’roll nas suas inspirações, mas quando é preciso citar influências ou ícones de moda de homem no momento fala do omnipresente rapper Kanye West — conhecido também por desenhar moda ou por usar peças da feminina e respeitadíssima Céline —, ou no blogger espanhol Pelayo — muito ligado à moda.

“Os homens são apaixonantes porque, ao contrário das mulheres, demos-lhe menos frequentemente a palavra [na moda]”, sublinha Véronique Nichanian. “E desde há quatro ou cinco anos as revistas masculinas — na verdade todas as revistas — falam dos homens, dão-lhes a palavra e eles descobriram que é esperado deles que tenham necessidade de uma vestimenta, que anseiem por roupa, que se vistam por desejo. Intelectualmente libertou-se um novo estado de celebração, uma nova atitude masculina. Mais feliz.”

Wonder Magazine, V Man, Modern Men, Fashion For Man, Another Man. Dapper Dan, Grind, 10 Men, A Man About Town ou Port Magazine, enumeramos com o blogger português João Jacinto, que acredita que há um elemento de “revolução social e sexual” nesta agitação da moda masculina. “Há muitos homens a viver sozinhos, há uma certa independência do homem em relação às escolhas da mulher, da gravata que ela compra para ele”, exemplifica. “Gay ou hetero, as marcas diversificam os seus targets, identificando esse consumidor”, diz João Jacinto, embora Pombeiro acredite que o público gay tem mais poder de compra e, por vezes, um olhar mais arrojado para peças especiais.

As revistas masculinas de estilo que nos últimos anos enchem as bancas tanto são sintoma de um mercado inflamado quanto o influenciam. Este mês regressou a edição portuguesa da GQ, numa parceria entre a casa-mãe, a Condé Nast, e a editora Light House. O New York Times inaugurou em Abril a secção de Men’s Style, o cada vez mais importante site Business of Fashion criou um espaço só para o menswear e a semestral Fantastic Man continua numa espécie de pedestal mundo fora.

Esta publicação holandesa é, para um dos mais influentes e frescos designers de menswear actuais, o irlandês Jonathan Anderson, “causadora de uma viragem no mercado editorial e no menswear”. “É possível ver a influência deles a coincidir com a [maior e nova] importância do menswear na indústria da moda”, disse o designer, que fez a capa mais recente, ao New York Times sobre a revista, que se destaca pelas entrevistas, fotografia e grafismo. O que lá aparece ou a forma como é apresentado tende a surgir em novos sites de venda de moda de alta gama. A Hermès, por seu turno, lançou a 8 deste mês o MANifeste, um novo site para todo o universo masculino com listas e “castelos na areia”, nas palavras de Nichanian, para chegar “com humor” e muito jogo “aos homens que talvez não tenham o tempo ou sintam  timidez de vir às lojas Hermès”, mas também a “pessoas que estão longe das lojas” — é o luxo de homem a chegar-se às compras online. A tecnologia também se cinge ao pulso: em Outubro chega um novo Apple Watch Hermés.

A moda feminina parece o emprego expectável para um designer que termina a sua formação. Há mais marcas, mais emprego, mais variedade. Mas talvez também mais saturação. Fazem-se mais colecções por ano (as estações intermédias de resort e pre-Fall ainda não se aplicam ao menswear), sente-se uma “autofagia” criativa, como identifica o blogger português João Jacinto, que em Janeiro de 2013 criou o Gentleman’s Journal, em contraste com “o refresh na moda masculina” nas ideias. Um sector que, para o crítico de moda Alexander Fury, “está a gerar talentos que verdadeiramente questionam o statu quo”, como escreveu na revista T do New York Times há um ano, citando novamente Jonathan Anderson, Rick Owens ou Craig Green. E alguns dos maiores nomes da moda autoral actual vêm do menswear — de Raf Simons (Dior) a Hedi Slimane (Saint Laurent).

Véronique Nichanian deu por si a trabalhar em moda masculina “por acaso. E sinto-me muito afortunada”. A moda feminina “é outra coisa. Nunca fiz, talvez a faça, talvez nunca a faça”. Quando foi convidada por Jean-Louis Dumas, que presidiu à Hermès entre 1978 e 2006 (morreu em 2010), Dumas disse a Nichanian: “Tens carta branca.” “Um sonho”, ri-se, de que ainda não despertou. “A moda masculina ainda me diverte mais.”

O mundo em que trabalha é vasto. A caminho do jardim no terraço do edifício, para onde raramente consegue fugir, espreitamos o atelier onde se fazem as muito cobiçadas selas de cavalos da Hermès, por exemplo. A francesa franzina de olhos esverdeados descreve-se como “exigente”. Quer e precisa — e são os verbos que usa — “que tudo seja perfeito” até num email que troque internamente com a sua equipa. Coordena e desenha com o estúdio que desenvolve as colecções de pronto-a-vestir, está em diálogo constante com a divisão de sapatos encabeçada por Pierre Hardy, sabe o que se passa nas sedas, nas peles. É para lá que vamos a seguir, de regresso a Pantin e aos arredores de Paris, para o atelier dedicado às peles num novo edifício Hermès recheado com pátios verdes e ensolarados.

Se há matéria-prima imediatamente associada à Hermès, é a pele, a das it bags tão difíceis de comprar que geram listas de espera de anos ou filas serpenteantes nas lojas e as usadas no universo equestre que continua a simbolizar a marca parisiense.

O coordenador do atelier de menswear e leatherwear é contagiantemente entusiástico — um embaixador do cool na casa do clássico. Cyril Brandenburg desdobra rolos de peles, costuradas e coloridas, encantado mesmo com o que já conhece. Mostra três cores distintas de pele de cobra — branco, cinzento e vermelho — unidas numa peça que viria a ser um casaco e com um tratamento que lhes dá a suavidade de papel de seda. Amassa-a, arrepanha-a, e ela volta sempre à forma inicial. Foi para a passerelle em Junho.

Ali, ouve-se o ruído de metal a roçar no metal, para afiar as peças usadas para cortar um blusão — trabalho que demora 1h30 ou duas horas. Parece tudo mais rápido do que na camisas, mas não é. Aqui faz-se a investigação e desenvolvimento das colecções de pronto-a-vestir, entre 20 e 30 peças por estação, mas também se fazem peças à medida. E “80% do tempo é passado a estudar as peles”. Depois é “ajustar o gesto”, explica o jovem especialista em modelagem, e passar mais de uma hora só a cortar.

Gira pela sala carregada — de peles, de cores mais escuras, de maquinaria mais pesada. Entre elas, uma peça tosca com cabo de madeira e metal aguçado na ponta. Tem um ar improvisado. “Estamos em 2015 e ainda trabalhamos com ferramentas assim, que parecem saídas da Guerra dos Tronos”, ri-se sobre as peças velhinhas que se herdam nos ateliers da Hermès e que não têm rival na sua eficácia.

Eric faz os moldes, “é o arquitecto da peça, quem lhe dá verdadeiramente vida”. Francis trabalha na cor das peles. Augustin é um dos costureiros. Os martelos açoitam a pele para alisar uma costura.

Um camisolão cinzento de pele com bordados de lã relaxa num cabide, como que a ponderar se vai para um vídeo de hip hop ou para uma estância alpina. “Gosto que arrisquemos, que arrojemos na cor, nos padrões. Não é uma casa velha. Tem idade e é uma casa antiga, mas atreve-se”, solta Brandenburg.

De dentro de um saco protector macio sai um blusão cinzento-rato com o interior gravado. Na etiqueta lê-se a sua identidade — “Hermès, commande particulière”. O seu futuro dono vai ser o único no mundo com uma peça assim. “O peso, o conforto” das peças “são grandes preocupações” — e destrinça, sobre algo que para ele não é efémero, nem descartável — “porque fazemos menswear, não é bem ‘moda’”.

O PÚBLICO viajou a convite da Hermès
 

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As peles são uma das matérias-primas que imediatamente associamos à maison Hermès
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Criei os ateliers de camisas, de malhas, de pele, para realizar encomendas especiais e excepcionais. São as encomendas particulares — o luxo está aí. Não é só poder pagar, é poder fazer coisas únicas.
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Corte sobre um carré para o transformar numa camisa
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