“A luta continua” é a mensagem da Fundação Mandela a Jorge Sampaio

A Fundação Gulbenkian quis comemorar “uma das maiores distinções internacionais alguma vez concedida a um português”. Sampaio prometeu “assegurar a passagem de testemunho entre Mandela e as novas gerações”.

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Honrar Mandela é “assumir o dever de resistir”, disse Jorge Sampaio na cerimónia em Lisboa Miguel Manso

A iniciativa partiu da Fundação Calouste Gulbenkian e do seu presidente, Artur Santos Silva. A ideia era reunir amigos e comemorar a primeira edição do Prémio Nelson Mandela, atribuído a Jorge Sampaio e entregue na sexta-feira, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Foram muitos os que não quiseram deixar de estar presentes: políticos no activo e antigos ministros, embaixadores, cidadãos comuns ou sírios que estão a acabar os estudos universitários em Portugal graças à iniciativa que por estes tempos mais ocupa o ex-presidente da República.

O principal auditório da fundação foi pequeno e dezenas de pessoas ficaram de fora, a assistir através de ecrãs. Foi uma cerimónia formal, com discursos a acontecerem na ordem prevista, mas também uma festa, com muitos aplausos e risos, que terminou com um concerto em que músicos portugueses tocaram temas sul-africanos.

Dos discursos sobressaiu o orgulho na distinção, mas também a responsabilidade que o Prémio acarreta – Sampaio, que desde que deixou a presidência já foi duas vezes enviado da ONU e assim que deixou de o ser, em 2013, lançou a Plataforma Global de Assistência de Emergência a Estudantes Sírios, não precisa dela para não parar, mas todos lhe lembraram que faz falta e que contam com ele no futuro.

Santos Silva abriu as intervenções, sublinhando que este prémio é “uma das maiores distinções internacionais alguma vez concedida a um português”. Um português que em todas as suas funções se destacou, entre outros motivos, por “dialogar como quem respira”. “Em Jorge Sampaio sobressai a integridade de carácter rara, uma grande lealdade aos afectos e um enorme firmeza na defesa de valores”, descreveu Santos Silva. “Como português, tenho orgulho em saber que podemos continuar a contar com a sua sabedoria inesgotável e com a sua incansável dedicação ao bem comum.”

Lembrando o percurso de Jorge Sampaio desde as lutas universitárias na ditadura, passando pelo “papel fundamental de construção e consolidação da nossa democracia” e pelos anos à frente da câmara municipal de Lisboa, o responsável pela Gulbenkian disse que foi na presidência que Sampaio “evidenciou toda a sua visão de futuro, dando especial atenção à dimensão externa” do cargo, mas sublinhando, ao mesmo tempo, “a valorização do ensino superior e a prioridade à investigação e à inovação”.

Na plateia, estavam muitos socialistas, como António Costa e o candidato presidencial António de Sampaio da Nóvoa (que Jorge Sampaio apoia), Ferro Rodrigues, ou o antigo ministro da Saúde, António Correia de Campos, a quem coube trazer um dos testemunhos sobre o laureado, mas também actuais governantes, como o ministro da Economia, Pires de Lima.

“Entre a cerimónia de Nova Iorque e as primeiras recordações que tenho dele, há 55 anos, vai uma vida de lutas, valores, conquistas e afectos”, afirmou Correia de Campos, que arrancou muitos risos ao lembrar o estudante de Direito que impressionava por “ler o Observer, pela roupa pouco variada mas irrepreensível, pelo ruivo do cabelo e as sardas”. Um jovem “elegante sendo desajeitado”, “bem pensante sem ser ostensivamente culto”, “alegre sem ser expansivo”, com “carisma embora aparentasse timidez” e “independente”, num tempo em que todos pertenciam a tribos definidas.

Para o antigo colega de lutas académicas, e depois de vida partidária, Sampaio destaca-se ainda pelo seu entusiasmo e pela capacidade de estimular os outros. “Tenho sofrido estes ataques de estímulo”, brincou. “Principalmente na insistência para escrever, eu e outros não escrevemos para Sampaio, mas é em grande parte para deixarmos de o ouvir que temos escrito.”

Desde que deixou a presidência, disse Correia de Campos, Sampaio deixou de precisar de criar nichos, como fazia antes, “estes passaram a vir ter consigo”. O antigo Presidente português foi o primeiro Enviado Especial da ONU na Luta Contra a Tuberculose, a convite do então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e um ano depois, a convite já de Ban Ki-moon, passava a acumular essas funções com as de Representante da organização na Aliança para as Civilizações, um fórum de diálogo lançado por iniciativa da França e da Turquia.

“Quem se não ele em Portugal podia ter abraçado a causa dos estudantes sírios num tempo de exaustão e penúria económica?”, perguntou Correia de Campos. E para sossegar quem se preocupe com “o peso” que Sampaio carrega, o amigo assegurou que ele “sofre os males do mundo mas não os carrega, resolve-os à sua escala”.

Fiel depositário                                                                  

Sampaio agradeceu a todos e brincou com “o peso” da cerimónia, “um dia muito agradável, mas pesado” como “compreenderão” os que melhor o conhecem. Como fez em Nova Iorque, afirmou-se mais do que laureado “fiel depositário” deste prémio, que partilhou com a oftalmologista da Namíbia Helena Ndume, e que só voltará a ser atribuído daqui a cinco anos, de novo a um homem e a uma mulher, de origens geográficas diferentes.

Como na sexta-feira, Sampaio voltou esta segunda-feira a fazer um diagnóstico duro do momento actual. “Incapaz de gerir bem a inédita complexidade da presente globalização, este novo século começou mal, carregando já nestes seus primeiros anos um cortejo de indescritíveis violências, situações de terror múltiplo e geograficamente disperso, crises económicas e financeiras demolidoras de um desejável progresso social com preocupantes efeitos numa grande descredibilização da acção política”, descreveu.

Mas apoiando-se no exemplo do homem a cujo nome “agora ficará sempre ligado”, lembrou de novo que honrar Mandela é “assumir o dever de resistir”, mais ainda agora, quando “tornados cidadãos do mundo, todos somos testemunhas directas das tragédias e temos a obrigação moral e cívica de estarmos atentos”. A sua responsabilidade, diz é “assegurar a passagem de testemunho entre o exemplo de Mandela e as novas gerações”.

Um dia feliz

Uma das intervenções mais emocionadas foi a da embaixadora sul-africana em Portugal, Keitumetse Matthews, “honrada e privilegiada por esta cerimónia acontecer quando está em Portugal em representação do seu país” e da memória de Mandela, que se tornou “Presidente de muitos países” para além da África do Sul.

“Hoje é um dia feliz”, disse Matthews. “O mundo não pode viver sem si e sem pessoas assim”, afirmou, dirigindo-se a Sampaio. Depois, leu duas mensagens, uma de Graça Machel, viúva de Mandela, que agradeceu ao laureado “os seus esforços recentes pelos sírios” e pelos de sempre “para fazer do mundo um lugar melhor”, e outra do conselho de directores da Fundação Mandela.

A fundação lembrou “os muitos anos de serviço à humanidade e a dedicação à procura de soluções para problemas que parecem impossíveis” de Sampaio. “Confio que o prémio o motive a prosseguir”, leu ainda Matthews da missiva assinada pelo presidente do conselho, Achmat Dangor. Uma carta que termina com uma frase, em português: “A luta continua”.

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