Depois do "não" grego, talvez a Europa possa sobreviver

Os gregos deram a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem e de dignidade.

A vitória do "não" na Grécia foi a vitória da democracia contra a tirania, a vitória da política contra a burocracia, a vitória da liberdade contra a ditadura financeira, a vitória dos cidadãos contra os capatazes, a vitória da soberania nacional contra o colaboracionismo, a vitória da dignidade contra a chantagem, a vitória da honra contra a subserviência, a vitória da coragem contra o medo, a vitória da ousadia.

Os gregos deram este domingo a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem e de dignidade pela qual não podemos deixar de nos sentir devedores e gratos.

É surpreendente descobrir, de súbito, nesta envilecida Europa do racket e da negociata, nesta Europa da fuga aos impostos legalizada, nesta Europa capturada pela Alemanha, nesta Europa colonialista de proximidade que quer transformar os países devedores nas eternas vacas leiteiras dos mais ricos, nesta Europa onde quase todos os políticos parecem ter sido comprados pelo grande capital ou aspirarem a sê-lo, nesta adormecida Europa onde a democracia é sempre recebida com um esgar de desprezo, nesta Europa onde pontificam seres com a honorabilidade de um Jeroen Dijsselbloem ou de um Jean-Claude Juncker, nesta miserável Europa que nem sequer admite receber os refugiados que tentam fugir à morte através do Mediterrâneo, é surpreendente descobrir, dizia, que talvez ainda seja possível uma réstia de democracia. E isso é algo que não pode deixar de nos emocionar e de nos dar alguma esperança.

O referendo grego mostra, acima de tudo, que a União Europeia pode não ser incompatível com a democracia, como tudo o que tem acontecido na Europa desde o Tratado de Maastricht parece provar, como tudo o que tem acontecido na União Económica e Monetária parece tornar evidente. Aquele que se orgulhava de ser o "clube das democracias" está de facto cada vez mais próximo de ser o "carrasco das democracias" e o referendo grego pode dar a esta trajectória assassina a inflexão moral que todos os democratas desejam.

Não é apenas a vitória do "não" que é surpreendente, mas a dimensão dessa vitória, atendendo à pressão que foi colocada nos últimos dias sobre os cidadãos gregos, ameaçando-os de todas as formas possíveis e tentando aterrorizá-los com o que aconteceria caso se atrevessem a votar nesta opção. Eurocratas de direita ou nominalmente de esquerda, como o senhor Dijsselbloem ou o senhor Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu; políticos europeus de direita ou nominalmente de esquerda, como Matteo Renzi ou François Hollande, todos tentaram apresentar o "sim" como a única escolha razoável, porque garantia a manutenção da Grécia no euro, e o "não" como um voto irresponsável e suicida, porque empurraria a Grécia para fora do euro.

Martin Schulz, o homem que gosta de se mostrar moderado, fez questão de afirmar que um voto "não" significaria o fim imediato do financiamento europeu e que "sem dinheiro, os salários não poderiam ser pagos, o sistema de saúde deixaria de funcionar, o fornecimento de electricidade e o sistema de transportes públicos ficaria paralisado". O auto-excluído ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, terá exagerado muito ao falar de "terrorismo"?

Não só políticos europeus de vários sectores mas as próprias autoridades europeias, que deveriam estar obrigadas pelo seu cargo a uma estrita equidistância das várias posições em jogo, não hesitaram em apelar descaradamente à mudança de regime na Grécia, à substituição do democraticamente eleito governo do Syriza por um governo de tecnocratas que obedecesse a Bruxelas. Pouco faltou para que Bruxelas apelasse a um golpe de Estado em Atenas. Se alguém queria certificar-se de quão fino é o verniz democrático que cobre a política europeia, os últimos dias deram-nos uma resposta cabal e terrível. Na UE a democracia só é respeitada quando produz o efeito desejado pelo poder financeiro - leia-se, no caso concreto, pela Alemanha.

Quanto àquilo que seria o custo político, económico, social e humano do "sim" e da aceitação de um acordo draconiano que manteria a Grécia na miséria durante décadas ou mesmo eternamente, ninguém, nos órgãos europeus, se preocupou. O voto grego foi um voto de rejeição de todas estas pressões e, por isso, é duplamente respeitável.

É interessante ver a cobertura mediática que foi feita na Grécia durante a curta campanha antes do referendo. Uma medição feita nas seis principais estações de TV do país de duas grandes manifestações de sinal oposto deram um resultado claro: a manifestação do "sim" mereceu 46 minutos de cobertura; a manifestação do "não", 8 minutos. A vitória do "não" é também uma vitória contra a manipulação da informação.

É verdade que ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dias e que a promessa de Tsipras de um acordo com a UE em 48 horas está longe de estar garantida. O que a UE não pode ignorar é que o povo soberano da Grécia disse não à austeridade, que mandatou o seu governo para não aceitar mais austeridade e que quer ficar no euro. Assim, a UE tem duas opções: ou muda de atitude e se coloca do lado da solução da crise, da solidariedade, da democracia e do progresso económico ou expulsa a Grécia e, a curto prazo, rebenta.

Quanto ao governo grego que, devido à sua atitude conciliatória e à sua tentativa de manter a discussão aberta em vários tabuleiros, teve nos últimos meses um percurso por vezes difícil de compreender, deveria dar uma absoluta e permanente transparência a todos os passos das negociações, incluindo as respostas "informais" que receber. O povo grego precisa de saber e perceber o que está a acontecer para demonstrar o seu apoio. E não só o povo grego. Nesta batalha pela democracia e pela justiça social na Europa, há muitos milhões de cidadãos de muitos países ao lado de Atenas. E o povo não desistiu da democracia.

jvmalheiros@gmail.com

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