Contexto e causa de um assassínio

O assassínio de Nemtsov torna claro que a guerra da Ucrânia se tornou num problema interno da Rússia.

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Uma bala é um vulgar e tradicional instrumento da política russa, escreve o analista Gleb Kuznetsov no Moscow Times. “O assassínio político faz parte da prática política corrente.” É inútil evocar a História russa ou as práticas funestas da era de Vladimir Putin. Apesar da banalidade do crime, a morte de Boris Nemtsov teve larga repercussão e pode servir como um sinal para a Europa.

Não é razoável imaginar o Presidente a dar a “ordem de matar” a um gang ou às suas polícias. A série de crimes políticos na Rússia faz lembrar a “Mão Negra” sérvia do princípio do século passado. Ao Presidente basta criar uma atmosfera de paranóia e de histeria nacionalista acicatada pela televisão: foi este o contexto e a causa do crime. O certo é que é perigoso ser adversário de Putin.

É significativo que imediatamente tenham circulado milhares de tweets a acusar a América de ter encomendado o assassínio — mais um complot ocidental para dilacerar a Rússia e manchar a imagem do seu Presidente. É também a pista indicada por “politólogos” próximos do Kremlin.

Grigori Iavlinski, fundador do partido de oposição Iabloko, associa o atentado contra Nemtsov à guerra na Ucrânia, que ele insistentemente denunciava, e às suas repercussões dentro da Rússia. “O assassínio de Boris Nemtsov, que chocou a Rússia, é o resultado de uma guerra que decorre desde há um ano. O espaço dessa guerra é muito mais vasto do que a área das operações militares no Leste da Ucrânia. Cobre o conjunto da Rússia e a antiga URSS.” Conclui: “A tragédia do assassínio de Nemtsov torna claro que a guerra não é só uma questão de política externa — é um problema interno maior da Rússia e que está a desfigurar a sociedade.”

Natalia Antonova, jornalista e escritora russa, pensa que o crime galvanizará a oposição mas pouco mudará, pelo menos a curto prazo. “Não vai pôr termo à caça às bruxas na televisão. Não fará repensar os objectivos russos no Leste da Ucrânia. (...) Mas a verdade é que o génio pode estar a escapar da garrafa. A constante campanha de ódio — na televisão, na internet e nas ruas — cria uma atmosfera propícia à atrocidade.”

A Rússia é Europa?
Nemtsov representava tudo o que Putin e os seus ideólogos odeiam, anota o analista francês Daniel Vernet: “Uma orientação pró-ocidental, a defesa do Estado de Direito e do respeito das liberdades individuais, a crítica da guerra na Tchetchénia já no tempo de Ieltsin e a denúncia da guerra na Ucrânia.”

Quais são os desígnios europeus de Putin e dos nacionalistas e euroasiatistas russos? Deixemos de lado o recorrente debate russo desde que, no século XVIII, Pedro I rompeu a tradição e “abriu as janelas para a Europa”. O filósofo francês Michel Eltchaninoff, estudioso do pensamento russo, publicou recentemente um livro — Dans la tête de Vladimir Poutine (Na cabeça de Vladimir Putin) — em que tenta decifrar o pensamento do Presidente russo. Fala na combinação entre a ideia “sovietista” (não comunista, mas militarista e imperial); a exaltação da “via russa”, segundo a qual a “Rússia deve seguir o seu próprio caminho e combater o Ocidente que a quer impedir de o fazer”; e finalmente o euroasiatismo que se exprime no projecto de uma União Euro-Asiática rival da União Europeia. A este patchwork ideológico, junta-se a “mentalidade KGB” e uma concepção autoritária do poder.

Estes elementos foram-se afirmando desde o seu acesso à presidência em 2000. Mas algo se radicalizou nos últimos anos. Explica numa entrevista o escritor russo Viktor Erofeiev: “Após o seu regresso, para o terceiro mandato [2012], ele assumiu como objectivo criar um contrapeso perante a Europa. Há uma certa analogia com o império russo. Putin não se vê como agressor. Sente-se traído pelo Ocidente. Quando começou a desenvolver a ideia de império, compreendeu que o império não pode existir sem a Ucrânia.”

A Rússia de Putin é Europa? Responde Erofeiev: “Globalmente, penso que a Rússia não é um país europeu, que a sua política actual não é europeia, direi mesmo que a sua política se funda no conflito com a Europa. (...) É um país entre o Oeste e o Leste. Nos seus melhores momentos, a Rússia une os valores do Oeste e do Leste. Nos seus piores momentos, senta-se entre duas cadeiras, o que dá a sensação de que a alma russa é incompreensível. O segundo fenómeno é que o mundo sem guerra, sem agressão e sem conflitos terminou. É um aspecto importante que os Ocidentais devem perceber.”

Com a abertura da crise ucraniana em Dezembro de 2013, o Kremlin designou a União Europeia como o seu inimigo directo. Os europeus não tiveram noção disso, não previram a violência reacção russa, não tiveram meios para responder.

Um oposicionista russo reconhecia há dias que uma oposição digna desse nome desapareceu. Hoje há, de novo, “dissidentes”. Putin apenas os teme por um motivo: o receio de um surto de descontentamento popular. A Ucrânia é a mola da mobilização patriótica e da sua sobrevivência política. Como explica Iavlinski, Nemtsov foi por isso assassinado. Por quem? Não é o que mais interessa.

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