O homem da metadona

De Eduíno Lopes recordo alguém para quem a problemática da toxicodependência era uma missão e uma paixão profissional.

No último fim-de-semana faleceu no Porto Eduíno Lopes, o introdutor das terapias de substituição opiácea com metadona no nosso país. Não é um nome susceptível de fazer eco no grande público, mas deixa uma trajectória de relevo num dos mais difíceis problemas com que o nosso tempo se tem confrontado: o problema da droga.

Conheci Eduíno Lopes em 1985, quando fui realizar o estágio de fim de curso em Psicologia no Centro de Estudos de Profilaxia da Droga – Norte (CEPD-N), que dirigia desde a sua criação, em 1977. Em meados dos anos 80 estávamos em plena expansão dos consumos de drogas em Portugal, desde o início dessa década marcados pela chegada da heroína aos mercados de rua e do começo de algo que muitos caracterizam como uma epidemia, tal foi a rapidez do aumento de indivíduos que se tornaram adictos a este opiáceo. Muitas famílias têm ainda hoje nas suas memórias o drama que viveram ao confrontar-se com a toxicodependência de algum dos seus membros, numa altura em que estávamos ainda todos impreparados para algo que, como muitos outros fenómenos e acontecimentos, irrompia na nossa sociedade depois dos quase cinquenta anos de fechamento provocado pela ditadura.

Nascido nos EUA em 1930, vem para Portugal com 5 anos e forma-se em Medicina em Coimbra. Regressa à terra natal para se fixar em Boston, tornando-se psiquiatra e trabalhando num centro que já utilizava metadona. Volta para Portugal pouco depois da revolução de Abril: em 1977, Almeida Santos, então ministro da Justiça, chama-o à direcção do CEPD-N, que juntamente com o do Centro e o do Sul constituía a ainda incipiente rede de tratamento. Inaugura a utilização da metadona como instrumento na clínica das toxicodependências, capitalizando assim a experiência adquirida em Boston, num dos primeiros centros dos EUA que puseram em prática este, à época, novo método nos cuidados prestados aos heroíno-dependentes.

O Porto seria durante cerca de quinze anos o único local em que se utilizava a metadona em Portugal – e terá sido mesmo o primeiro da Europa continental numa originalidade que estava longe de ser pacífica num tempo em que apenas eram admissíveis as terapias livres de drogas, reflectindo nos especialistas o mito da “erradicação da droga”. Eduíno seria, na altura, incompreendido por quase todos e condenado por muitos. Lutou nessa época sozinho – com a sua equipa de psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e psiquiatras – por um modelo de tratamento que os detractores diziam consistir no dislate de “dar droga a drogados”. Foi ainda neste contexto de excepção que promoveu a primeira entrada da metadona nas prisões: entre 1979 e meados dos anos 80, técnicos do CEPD-N deslocavam-se às prisões de Custóias e de Paços de Ferreira, dando continuidade à substituição opiácea em reclusos que já eram seus utentes quando em meio livre.

Em meados dos anos 90 a metadona seria finalmente adoptada como instrumento de política de saúde na área da droga em todo o território nacional. Ao bom modo luso, alguns dos que propalavam aos ventos o erro de Eduíno apareciam agora como os arautos das terapias com metadona… Desses já mal me lembro, mas de Eduíno Lopes recordo alguém para quem a problemática da toxicodependência era uma missão e uma paixão profissional, pautando-se por um espírito de serviço e uma postura discreta numa altura em que o tema gerava protagonismos mediáticos e apetites dos que rapidamente encontram maneira de lucrar com a tragédia dos outros.

Eduíno era um apaixonado da relação humana: vivia com intensidade os inúmeros problemas de todos quantos procuravam ajuda no centro que dirigia, dominava a arte do encontro terapêutico – e sabem todos quantos trabalham na área como ele é exigente, desafiador, às vezes duro. Era psicanalista e admirador de Melanie Klein, gostávamos de lhe escutar as dissertações a respeito em colóquios improvisados durante os intervalos de serviço. A vocação clínica dificilmente se aprende by the book, tem como condição necessária a inquietação com a enigmática condição humana. “Dr. Heroíno”, como por vezes brincavam com ele os seus pacientes, era alguém com essa energia de olhar o outro de frente e exercitar a escuta e o confronto. No virar do milénio, na cerimónia festiva que reuniu amigos e colegas para assinalar a sua entrada na reforma, lembro-me da dedicatória que lhe escrevi num livro que acabara de publicar: Dustin Hoffman foi o homem da maratona – Eduíno Lopes é o homem da metadona.

Professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

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