A dispersão ideológica no centro-esquerda europeu e a indefinição do PS

O líder socialista não poderá entrar em promessas fáceis mas inexequíveis — até porque os eleitores já não acreditam em quem tudo lhes promete.

A família social-democrata/socialista/trabalhista europeia tem, desde há alguns anos, dado sinais de falta de unidade ideológica e, por isso mesmo, tem dado sinais de dispersão na acção política. A História mostra-nos que, até ao final do século XX, apesar das naturais diferenças de estilo relacionadas com as suas circunstâncias nacionais específicas, os partidos de centro-esquerda europeus partilhavam uma matriz ideológica comum: todos se destacavam pela defesa de um Estado social universal e gratuito, pela protecção do factor trabalho nas relações laborais, pelo enfoque na tributação progressiva que permitisse uma verdadeira redistribuição da riqueza entre grupos sociais, pela intervenção estatal na economia, entre outras bandeiras.

Ora, desde a década de 90, mas sobretudo durante o actual período de crise económica e financeira, os partidos da família social-democrata europeia têm mostrado que já não se encontram mais sintonizados em torno de uma série de causas comuns. Ao contrário do que é comum afirmar-se, nem todos os partidos de centro-esquerda aderiram acriticamente à Terceira Via, a corrente revisionista da social-democracia que marcou indelevelmente o Partido Trabalhista britânico de Blair ou o SPD alemão de Schröder. Não é possível dizer, por exemplo, que o PS de Sócrates ou o PSOE de Zapatero tenham sido especialmente influenciados por esta linha ideológica. A verdade é que os partidos de centro-esquerda foram enveredando por caminhos políticos diferentes, aproximando-se uns mais do centro político do que outros. Por isso, hoje temos, no seio da família socialista europeia, quem se mantenha mais próximo da social-democracia tradicional e quem, pelo contrário, teça loas ao funcionamento livre dos mercados, quem considere que o Estado social se deva reduzir a uma rede de segurança que apenas combata a exclusão social extrema, quem se oponha a reformas fiscais que aliviem os mais pobres e reforcem a carga tributária dos mais ricos, quem desconfie das reformas do sistema político que procuram fortalecer o poder democrático dos cidadãos e, naturalmente, estes diferentes posicionamentos ideológicos reflectem-se em diferentes visões sobre o papel e a organização da Europa.

É esta falta de unidade ideológica na família social-democrata europeia que tem impedido a unidade na acção política dos vários partidos que a compõem. Na semana passada, João Cardoso Rosas dizia-nos, na sua crónica no Diário Económico, que o mais surpreendente, no contexto europeu actual, era a social-democracia auto-excluir-se do debate político. Efectivamente, o centro-esquerda tem escolhido “não ir a jogo”, deixando a direita e a esquerda radical apresentarem as suas propostas, sem definir, de forma conjunta, a sua própria linha política, o seu diagnóstico dos problemas e as suas soluções. O que mais se estranha desde a vitória do Syriza, há cerca de um mês, não é tanto que os governos português e espanhol, ambos de direita, ambos ideologicamente distantes, surjam como os principais críticos das propostas do Governo grego: o que mais se estranha é que a social-democracia europeia, ideologicamente mais próxima do Syriza, não surja como apoiante clara e inequívoca de algumas medidas propostas (e, naturalmente, crítica de outras).

No entanto, não era possível esperar outra coisa do centro-esquerda europeu, que se encontra de facto dividido em discursos políticos antagónicos. Os sociais-democratas alemães, que integram a coligação de governo com a CDU de Merkel, ou os sociais-democratas holandeses, na chefia de um governo que une também centristas e liberais, mas sobretudo com o seu ministro das Finanças na presidência do Eurogrupo, são as faces mais visíveis de como há actualmente, na família social-democrata, quem tenha um discurso muito próximo do dos conservadores e dos liberais sustentando, com estes últimos, as políticas de austeridade que vão, em grande medida, contra a sua ideologia tradicional.

Apesar desta dispersão ideológica na família social-democrata europeia, exige-se que cada partido nacional escolha o seu caminho político e o afirme claramente. Esta é provavelmente a maior dificuldade que o PS terá de enfrentar, mesmo antes de apresentar um programa eleitoral: eleger uma direcção ideológica inequívoca, com três ou quatro causas fortes e mobilizadoras, que passem a ser recorrentes no discurso de António Costa.

As recentes sondagens mostram que o PS não sofreu um processo de “pasokização”, mantendo até o primeiro lugar nas intenções de voto. Mas fica claro que, para descolar da direita, terá de arriscar mais. Como escreveu São José Almeida, no sábado, aqui no PÚBLICO, o líder socialista não poderá entrar em promessas fáceis mas inexequíveis até porque os eleitores já não acreditam em quem tudo lhes promete. Mas terá de abandonar o discurso generalista e afirmar de forma taxativa, sem ambiguidades e sem receios, quais as principais metas específicas que deseja atingir e qual a via para as alcançar.

Politóloga, Instituto de Políticas Públicas TJ-CS e UBI

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