O poder biodiverso das autoridades

Eu estava com fome, confesso. Tinha saído de Lisboa de manhã cedo e passara três horas ao volante. Parei para assistir a uma cerimónia invulgar na história das solenidades oficiais: a inauguração de um sinal de trânsito.

Dezenas de pessoas estiveram envolvidas naquele acto de suma importância para o futuro da humanidade. Ocupavam transversalmente a estrada nacional, mas não de forma selvagem, pois o protocolo do poder tem precedência sobre a circulação rodoviária e a polícia cortara previamente o trânsito.

Todos testemunharam, com natural desinteresse, a sequência das operações. Quatro diligentes trabalhadores, vergando coletes amarelos, fizeram um buraco na berma, introduziram nela a haste do sinal e calcaram a base do conjunto com cimento, de modo a fixar, erecta, a novidade do Código da Estrada.

Concluída a manobra, o governante presente entregou-se aos jornalistas para as declarações de circunstância. Ávidos de informação, fizemos perguntas decisivas sobre o significado daquilo que acabáramos de observar. E a comitiva seguiu adiante para uma nova etapa na celebração da soltura de dois animais selvagens em risco de extinção, aos quais a placa aludia.

Tinha já o estômago colado às costas quando cheguei ao ponto de encontro seguinte e senti um inconfundível aroma de chouriço assado. Obra de bons anfitriões, havia um lanche à espera do cortejo, visto que os bichos seriam libertados já depois da hora universalmente convencionada para o repasto diurno. Foi aí, no meio da expectativa gastronómica expressa em muitas faces, que se sentiu mais uma vez o peso da autoridade. Ninguém podia entrar antes da chegada de outro governante, hierarquicamente superior ao que inaugurara a placa. E lá dentro, perante enchidos, croquetes, febras e queijos tentadores, ninguém tocou em nada enquanto o representante do poder não deu a primeira trinca.

Há uma certa anestesia social em relação ao respeito litúrgico pela “autoridade”. O estatuto aplica-se a quem, por mérito pessoal, conveniência política ou simples amizade, ocupa um determinado cargo reconhecido como importante – por exemplo uma cadeira no Governo. Por uma curiosa reacção orgânica, o nomeado passa a ser alvo de uma miríade de reverências no dia-a-dia.

Quando uma autoridade se desloca, mobilizam-se polícias para vigiar não se sabe bem o quê, corta-se o trânsito se necessário e omitem-se os limites de velocidade nas estradas, pois a pressa é exclusiva de quem governa. À chegada, haverá sempre alguém para lhe abrir a porta do carro, uma comissão de boas-vindas para lhe apertar a mão, um séquito de assessores sem função aparente e um conjunto de curiosos sem nada melhor para fazer.

Abundarão sorrisos, haverá comentários circunstanciais e prendas serão oferecidas. E no final, o que interessa: a autoridade falará para os presentes, como um sacerdote aos seus fiéis.

A génese de tanto salamaleque estará, suponho, no poder de contratar ou despedir, de enriquecer ou empobrecer, de prejudicar ou beneficiar, que em tese cabe às autoridades – caso contrário seria nome mal empregue.

Mas já ninguém pensa na origem dos comportamentos e daí que, com naturalidade, tenham sido um ministro e um secretário de Estado a aparecer na fotografia a soltar dois linces ibéricos para ver se a espécie se recupera no país.

Ficarão com uma bela imagem para mostrar aos netos. Mas no lanche foram ultrapassados: antes de começarem a comer, eu já tinha roubado uma rodela de chouriço.

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