Severas mentiras, velho fado nosso

Chega o Natal e, por entre as muitas ofertas possíveis, lá se insinua o Fado. Hão-de reparar, nas lojas, num volumoso livro de capa preta com um coração dourado que é nada menos do que o sucessor de Fado Portugal (2011). E se aquele trazia 2 CD e celebrava “200 anos de fado” este traz 4 CD e comemora os 100 anos de Martinho d’Assunção (1914-1992). O próximo há-de comemorar qualquer outra data, que as não faltam na história fadista, assim como não falta espaço para mais colectâneas. E esta, vogando entre vozes históricas e outras de fraca história, não frustrará os compradores, em particular os estrangeiros a quem primeiramente se dirige.

Mas não é por isso que ela aqui surge. É, sim, por via de uma gravura, impressa quase a fechar o livro, com a reprodução integral da capa do n.º 234 do jornal fadista Canção do Sul, datado de 1 de Setembro de 1939, sem qualquer explicação que a contextualize. E o que tem de especial tal capa? A presumível “única fotografia existente de Maria Severa Honofrianna”. Ou seja, da Severa que ao fado deu rosto mítico, sem que o tivesse fixado em imagens exactas. O jornal, eufórico, escrevia ao lado da imagem: “Em presença desta fotografia, quaisquer incertezas que ainda supurem — desaparecem automaticamente. Analisando bem o todo da jovem heroína, verifica-se nele os vínculos do tipo luso, nada aciganado. Vê-se que era simpática e de génio, farta de carnes, e tira-se por ilação (mau grado a sua infeliz condição social) que a sua beleza era susceptível de fazer andar a cabeça à roda a muito português valente. Tocava muito bem a banza [leia-se: a guitarra] e não trajava como os seus biógrafos a apresentam — com os trajes de meretriz do princípio deste século.” Na foto viam-se duas mulheres, uma de pé, debruçada sobre a outra mas olhando em frente, ajeitando o lenço que lhe cobria a cabeça, xaile pelas costas e saia comprida branca; e a outra sentada, dedilhando uma guitarra e com roupagens mais garridas. A legenda do jornal completava a imagem: “Maria Severa (à direita). A seu lado vê-se a Rosa Engeitada, pobre rapariga que o coração de oiro de sua companheira acarinhava e protegia.” Mais abaixo, esta indicação tão imperativa quanto ameaçadora: “(reprodução rigorosamente proibida).”

“Um documento para a história”, “uma relíquia”, como afirmava o jornal? Ou um embuste pegado? O jornal Guitarra de Portugal tratou de investigar e, na sua edição de 10 de Setembro de 1939, contou tudo o que conseguiu saber. E era terrível. A história foi reunida, muitos anos mais tarde, em 1999, num dos volumes que compõem o monumental Um Século de Fado do Ediclube (Histórias do Fado, por Maria Guinot, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório). O que descobriu este jornal? Que a “relíquia” (que o Canção do Sul garantia estar em posse “de distinta família”) era apenas uma reprodução parcial de um postal ilustrado anunciando um dos quadros da revista Na Ponta da Unha, estreada em 1902, quadro esse onde as actrizes Acácia Reis e Rosa d’Oliveira representavam, respectivamente, a Severa e a Rosa Enjeitada; só que, ao contrário do que descrevia o Canção do Sul, era a “Severa” que estava de pé e a “Rosa Engeitada” (que o jornal apresentava como Severa) sentada, a dedilhar a guitarra. Isso era facilmente comprovável com o próprio postal (que o Guitarra de Portugal reproduzia na íntegra, também na capa, com a legenda original do “Theatro”) mas outros pormenores tornavam ridícula a “descoberta” da foto. Primeiro: a Severa morreu em 1846 e só no ano seguinte, 1847, chegou a Portugal a primeira câmara fotográfica. Segundo: a cravelha metálica visível no postal não existia à época da Severa (não por acaso, numa aguarela copiada da foto/postal — e esta informação vem no livro de 1999 — Alberto Souza trocou nos anos 1940 tal cravelha por uma de madeira, insistindo porém no erro de chamar Severa… à Rosa).

Conclusão do jornal Guitarra de Portugal: “Se a publicação do boneco era já por si um disparate próprio de parvos, ou doidos, as palavras pomposas, a verborreia ali despejada em letra redonda, era o máximo da inconsciência.”

O que tem isto a ver com o Natal? Nada e tudo. Porque se aceitamos mentiras piedosas como a de um homem vestido de vermelho a descer pelas chaminés, já outras custam mais a engolir. E há tantas, ainda, a ressurgir por aí como as deste postal; expostas e sem legenda que as denuncie.     

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