A CIA cometeu “crimes de guerra” mas dificilmente haverá norte-americanos julgados

As Convenções de Genebra obrigam Washington a acusar ou extraditar qualquer pessoa “acusada de responsabilidade criminal” no recurso à tortura. Mas Obama não falou de responsabilidades criminais e não se espera que o faça.

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A área militar onde a Polónia deixou a CIA gerir uma prisão secreta Kacper Pempel/Reuters

Os apelos para que o relatório sobre a tortura da CIA seja o início de um processo que permita levar responsáveis a tribunal começaram logo depois da apresentação da investigação do Senado. Esta quarta-feira, o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos defendeu que não pode haver impunidade nem prescrições. “A Convenção contra a Tortura não deixa ninguém passar impune – nem os torturadores, nem os autores das políticas, nem os responsáveis públicos que definem a política ou dão as ordens”, disse Zeid Ra’ad al-Hussein num comunicado.

O muito esperado “Estudo do Programa de Detenção e Interrogatório da CIA”, lançado pela agência norte-americana depois do 11 de Setembro e mantido até 2008, mostra que o recurso às chamadas “técnicas de interrogatório agressivas” (Enhanced Interrogation Techniques) foi ainda mais intenso do que já se sabia e que vários responsáveis da agência mentiram repetidamente sobre o número de suspeitos alvo de técnicas que na sua maioria são consideradas tortura pela lei internacional e dos Estados Unidos.

Para além da simulação de afogamento ou da privação de sono (que no caso de um detido ultrapassou sete dias seguidos), o documento refere a imposição de “alimentação anal” e “reidratação anal”, assim como suspeitos com ossos das pernas partidos obrigados a permanecer de pé, acorrentados à parede. O problema não é apenas cada um dos métodos, mas as consequências provocadas pela sua utilização em conjunto, como a simulação de afogamento ou da execução de um detido combinada com privação de sono ou com longos períodos de isolamento.

Pelo menos um detido morreu numa das prisões geridas pela CIA em diferentes países; muitos outros sofreram de “insónia, alucinações, paranóia ou desenvolveram desejos suicidas”, disse a senadora Dianne Feinstein, chefe da Comissão de Serviços Secretos.

A investigação liderada pela senadora democrata concluiu ainda que a CIA sabia que os métodos que usava eram ilegais. Já se conheciam os chamados “memorandos da tortura”, onde responsáveis do Departamento da Justiça autorizaram a partir de Agosto de 2002 o uso destes métodos em determinadas circunstâncias. Agora, sabe-se que advogados da agência escreveram uma carta ao então Procurador Geral, John Ashcroft, onde reconheciam que as “técnicas de interrogatório agressivas” violavam o Estatuto da Tortura dos EUA e pediam “uma garantia formal de que ninguém seria acusado” – não é certo se a carta foi enviada.

Antes do comissário Zeid Ra’ad al-Hussein, já o investigador especial da ONU para Direitos Humanos e Contraterrorismo, afirmava que os EUA estão obrigados pela lei internacional a responsabilizar os criminosos. “O facto de as políticas reveladas neste relatório terem sido autorizadas a um nível alto da Administração não é desculpa”, afirmou Ben Emmerson. “Isso só reforça a necessidade de responsabilização criminal”.

Organizações como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional fizeram apelos semelhantes e vários juristas lembraram que a Convenção contra a Tortura e as Convenções de Genebra obrigam Washington a acusar ou extraditar qualquer pessoa “acusada de responsabilidade criminal” no recurso à tortura.

Depois de um comunicado escrito, onde descrevia “um programa perturbador”, o Presidente Barack Obama falou esta quarta-feira à Telemundo (cadeia de televisão em espanhol nos EUA). Afirmou que não é possível imaginar a pressão vivida no pós-11 de Setembro mas disse que isso “não nos desculpa de olhar de forma honesta para o que aconteceu e garantir que isso não se repete”.

Obama não falou de responsabilidades criminais e não se espera que o faça – um responsável do Departamento da Justiça disse à AFP que a Administração não encontra aqui “nenhuma informação nova” face à investigação que o próprio departamento desencadeou em 2009. Durante a campanha eleitoral de 2008, Obama comprometeu-se a iniciar investigações criminais se ficasse provado que “altos responsáveis tivessem conscientemente violado leis ou ajudado a encobrir crimes”. Quando a investigação iniciada em 2009 ficou concluída, em 2012, a decisão foi não acusar ninguém.

Polónia e Lituânia
Os nomes dos países onde a CIA teve prisões não aparecem nas 528 páginas divulgadas (de um relatório de 6700), mas o ex-Presidente da Polónia (1995-2005), Aleksander Kwasniewski, admitiu que autorizou a CIA a operar um centro de interrogatório secreto no seu país. Kwasniewski afirma que pediu à Administração de George W. Bush para assinar um documento onde garantia que as pessoas ali detidas seriam tratadas de acordo com as normas humanitárias. “O memorando nunca foi assinado pelos americanos", diz.

Já o Governo da Lituânia anunciou que vai pedir a Washington a versão total do relatório, ou pelo menos a versão divulgada sem as partes censuradas, já que acredita que a prisão referida no documento pelo nome Violeta, e onde foram torturados detidos, fica perto de Vilnius. O Parlamento lituano já investigara essas suspeitas e o primeiro-ministro, Algirdas Butkevicius, diz esperar que essa investigação seja reaberta.

Entrevistado pela CNN, o ex-procurador chefe das comissões militares de Guantánamo descreve os métodos detalhados no relatório como “crimes de guerra”, mas duvida que algum dia os responsáveis se sentem num tribunal.

“É interessante o contraste entre os que falaram contra a tortura e foram perseguidos e os que a permitiram e lucraram com isso”, diz o coronel Morris Davis, que se demitiu em 2007 por considerar impossível qualquer julgamento justo na base de Cuba. “O Presidente voltou a dizer que quer olhar para a frente, não para trás, ficarei muito surpreendido se o vir responsabilizar alguém criminalmente.”

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