A porta que se abriu ao jazz no Porto

Um grupo com umas dezenas de músicos de jazz do Porto cansou-se de não ser ouvido. Reuniram-se numa associação, a Porta Jazz, criaram um auditório e este domingo dão início ao seu quinto festival. Notas sobre a determinação e a recusa de ficar no silêncio.

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A maior parte da geração que dá músculo ao Porta Jazz tem por volta dos 30 anos. Conhecem-se há anos, já todos tocaram com todos Manuel Roberto

Sexta-feira, ao final da manhã, numa sala duma escola de música na zona da Boavista, no Porto. Flauta na mão esquerda, um lápis na direita, João Pedro Brandão prepara-se para dar início a mais um round de ensaios com que o colectivo Coreto se prepara para fechar a quinta edição do Festival Porta Jazz. Uma boa dúzia de músicos reúne-se em círculo, o compositor do tema ensaiado, Paulo Perfeito, acabara de sair, a hora de trabalhar impunha-se sem que com essa dedicação alguém esperasse algo mais do que o prazer de tocar. Num país e numa cidade onde o jazz é uma expressão musical alimentada apenas pela boa-vontade, o Porta Jazz é um acto de resistência. Sem essa associação livre e pouco ortodoxa, não haveria onde tocar, não haveria a mesma intensidade de contactos entre os músicos de jazz do Porto, não haveria novas bandas nem expectativas.

Fundado há cinco anos a partir de um triunvirato de músicos, a associação foi uma resposta ao encerramento de espaços no Porto onde se podia ver e ouvir jazz ao vivo. O funcionamento de escolas onde se aprende jazz, desde a velha Escola de Jazz do Porto à Valentim de Carvalho, do Conservatório à mais recente Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE), foram propiciando oportunidades de trabalho aos músicos na docência. Alguns, como Paulo Perfeito, fazem o seu doutoramento. Outros vivem entre o Porto e o estrangeiro, como a trompetista Susana Santos Silva, que acaba de regressar da Suécia e da Finlândia. Há também quem tenha vindo de fora e mantenha contactos pelo Porto, como o vibrafonista catalão Marcelo Pascual.

Entre alunos, professores e melómanos, o público do jazz no Porto manteve-se e, na impressão dos músicos do Porta Jazz, pode até estar a engrossar nos anos recentes. O problema é que a manifestação dessa vitalidade não tinha por onde se expressar. Com excepção da Orquestra de Jazz de Matosinhos, o surgimento de novos combos e de novos projectos abrandou. Se há uns anos havia uns dez palcos na vida nocturna da cidade onde se podia ouvir jazz, actualmente existem apenas um ou dois, e com uma programação errática.

Havia que promover contactos entre os músicos e criar salas onde pudessem criar novas experiências. “O Porta Jazz tornou-se inevitável para nós”, afirma o saxofonista Rui Teixeira.

Há cinco anos, a associação apresentou-se à cidade com um festival que decorreu em bares, onde actuaram várias formações. O sucesso do evento levou à sua repetição. Entre este domingo e segunda-feira cumpre-se o quinto festival consecutivo do Porta Jazz. São, ao todo, dez agrupamentos em duas noites de actuações das 16h30 às 24h.

No ano passado, a associação conseguiu um espaço no Edifício Axa, um condomínio cultural gerido pela Câmara Municipal no coração do Porto. Depois de uma série de concertos em que os músicos actuaram gratuitamente, conseguiram comprar um piano. A partir do momento em que passaram a dispor de condições mínimas, os músicos do Porta Jazz começaram a organizar concertos regulares no Axa. Tinha nascido um espaço capaz de fazer ressurgir a onda do jazz no Porto. “Passámos a ter um espaço para tocar, para podermos apresentar os nossos projectos”, diz João Pedro Brandão.

Ninguém sabe ao certo quantos músicos há dedicados ao jazz. Com actividade regular podem ser 80. Como mandam as boas práticas do jazz, os músicos desdobram-se em múltiplos projectos. Alguns dos que tocam no colectivo Coreto participam em formações menores e entre hoje e amanhã vão participar em dois ou três concertos. Na maior parte dos casos, as composições são originais. Foram concebidas para diferentes formações, de trios clássicos de piano, contrabaixo e bateria a pequenas big bands, como é o caso do Coreto.

A maior parte da geração que dá músculo ao Porta Jazz tem por volta dos 30 anos. Conhecem-se há anos, já todos tocaram praticamente com todos. Sentem-se herdeiros e continuadores de uma escola que, se está longe de ter a densidade e a memória do jazz de Lisboa, tem as suas referências e os seus consagrados. Os irmãos Pedro e Mário Barreiros, os saxofonistas Mário Santos e José Luís Rego ou, mais recentemente, os pianistas e compositores Carlos Azevedo e Pedro Guedes estão entre os músicos que “foram fundamentais para todos nós”, diz João Pedro Brandão.

Unidos pela necessidade de ter palco, poucos esperam dos seus concertos outros dividendos para lá do prazer de tocar. Com excepção de Susana Santos Silva, os músicos de jazz vivem da docência e sabem que a profissionalização como músicos de jazz em exclusividade é difícil. “Temos de viver vidas low-cost”, ironiza Susana. Mas esse muro que lhes limita as possibilidades está na origem da sua liberdade criativa e do seu espírito comunitário.

“Pergunto se este projecto poderia acontecer em outras zonas do país”, indaga Rui Teixeira. Não apenas por conseguir durar há cinco anos com escassos apoios – para lá da Câmara ou da Faculdade de Economia que ajuda a financiar a edição do catálogo Carimbo, propriedade da associação. Também por funcionar quase em exclusivo como uma paixão. “Fazemos as coisas sem termos de estar empenhados no negócio, escapamos à venda”, diz João Pedro Brandão.

“O facto de estarmos mais afastados do dinheiro fez com que nos habituássemos a fazer aquilo que queremos. Somos nós que pagamos a nossa música”, explica o cantor Kiko, o líder dos Jazz Refugees, que assinaram o álbum L’USA, em 2012.

É essa liberdade que poderá ser vista e ouvida hoje e amanhã, no Cinema Passos Manuel (ao lado do Coliseu do Porto).

 

 

 

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