Escritores suicidas e violência plebeia

Miguel de Unamuno escreveu, em 1908, que Portugal era “um povo de suicidas, talvez um povo suicida”. Nesse mesmo ano, Trindade Coelho suicidara-se na rua da Misericórdia, ou do Mundo. Para trás, tinham ficado os actos do mesmo género de Camilo Castelo Branco, Soares dos Reis e Antero do Quental. Ao lado dos nomes de escritores e artistas, a lista também incluía Mouzinho de Albuquerque, o famigerado herói das campanhas de África, que tinha subjugado e humilhado Gungunhana – “em quem muitos esperavam ver ressurgir algum dos heróis antigos da epopeia camoniana”. E o desgraçado Buiça, o regicida, que escrevera no seu testamento: “meus filhos ficam pobríssimos; não tenho nada para lhes deixar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que sofrem”.

Unamuno viajou por Portugal, manteve com alguns dos nossos escritores uma correspondência regular e tinha, à sua maneira, uma evidente simpatia pelos portugueses e pela sua literatura. Para ele, tanto o povo português como a sua literatura, mesmo aquela que era cómica e jocosa, eram tristes. Desta constatação, recorrendo à referida lista de nomes, passou para a ideia de Portugal como “povo suicida”.

O ensaísta e poeta Pablo Javier Pérez Lopez reedita neste livro, em tradução portuguesa, o muito conhecido ensaio de Unamuno e, de seguida, reúne alguns textos em prosa e em verso de Camilo, Antero, Manuel Laranjeira, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca e do Barão de Teive, heterónimo de Pessoa. A morte, a tristeza e o suicídio anunciado são os temas que dão coerência a esta antologia. O prefácio de Hugo Mãe, escrito à pressa, faz um delirante paralelo entre um bolero ouvido ao almoço, num restaurante da Colômbia, por um colectivo que carece de identificação, e os suicidas portugueses. Caramba, digo eu! Será difícil encontrar uma conexão com tão pouco sentido.

E, num ensaio final de 22 páginas, Pérez Lopez passa do Portugal de “povo suicida”, de Unamuno, ao qualificativo de “povo trágico”. Porquê? Porque, segundo Camus, o suicídio é “uma das vias que estruturam a experiência do trágico”. E a “prova disso é a especial importância ou presença do suicídio entre este conjunto de escritores portugueses, e a presença, de uma forma geral, da pulsão de morte na experiência literária, mítica, histórica e identitária do povo português”. Ou seja, o suicídio presente nos escritores que se suicidaram (!), mais a atracção pelos temas da morte na literatura portuguesa implicam que a identidade portuguesa seja, agora, considerada trágica.

Tenho muitas dúvidas que este género de articulações representem um grande avanço em relação ao que propôs Unamuno. Também ele interessado no sentido trágico dos povos peninsulares. E as ideias de Pérez Lopez, que incluem referências não só a Camus, como Heidegger e Foucault, parecem funcionar em círculo. Prefiro, por isso, discutir o ensaio de Unamuno e sublinhar que o livro vale sobretudo pela sua reedição.

Seria possível discutir – não fora o incómodo que causaria a muitos intérpretes da nação, sempre afoitos a definir a identidade do povo português com uma ou duas pinceladas, do género dos labirintos ou dos medos de existir – os limites do próprio género ensaístico. Como será possível passar de uma série de escritores que se suicidaram, num espaço de tempo de algumas décadas, para a generalização de um povo suicida e triste? Ora, não será mais por selecção arbitrária e por operações que escamoteiam outras séries, outras regularidades comportamentais e literárias, que procede o ensaio de Unamuno? Penso que sim.

Há, no entanto, na parte final do ensaio de Unamuno, uma outra ideia que, embora atribuída a um escritor que se suicidou, Camilo, também serve para caracterizar a identidade portuguesa (e está longe, mesmo muito longe, de poder ser reduzida à tristeza, à inclinação para a morte ao suicídio ou a um qualquer fim trágico). Refiro-me a essa “violência plebeia que até assusta”, capaz de pôr em causa essa outra ideia feita de que a “brandura” e a “meiguice portuguesa” são características identitárias, quando só estão “apenas à superfície”. Tudo isto nas palavras de Unamuno que, assim, critica a ideia do Portugal dos brandos costumes. É que sem este contraponto, desenvolvido no final do ensaio, o sentido do “povo de suicidas” fica não só incompleto, como sai deturpado.

E a violência, também denominada “ferocidade portuguesa”, não era apenas perpetrada pelos plebeus. “A brandura é uma máscara”, explicou com clareza Unamuno a respeito dos portugueses, e continuou, na tradução nem sempre clara do livro em apreço: “A linguagem da imprensa ultrapassa aqui em violência o que de mais violento se escreve em Espanha. Aí nunca teriam podido escrever-se páginas como as que Fialho de Almeida dedicou n’Os Gatos à morte do rei D. Luís e à proclamação do rei D. Carlos, que não tardou a ser morto por (sic) Buiça. E, na literatura, os nossos mais fogosos escritores têm de ceder em força aos de aqui. Este é um pouco (sic) não apenas sentimental mas apaixonado, ou, melhor, mais apaixonado do que sentimental. A paixão leva-o à vida, e a mesma paixão, consumido o seu alimento, leva-o à morte”.

Há, então, na ideia de um povo de suicidas de Unamuno uma espécie de contraponto – de dialéctica – constituído pela violência, a começar pela ferocidade plebeia, mas que também se encontra na linguagem da imprensa e dos escritores. Era, aliás, interessante ligar essa violência às situações de fome e ao analfabetismo, que servia de pano de fundo ao trabalho de muitos escritores, artistas e intelectuais. Tal como mais tarde conta Aquilino, em Um escritor confessa-se, a respeito da Beira Alta e de muitas das suas narrativas: “Homicídios, agressões eram acidentes quotidianos no planalto, em geral obra de arruaça e despique. A guarda ali não chegava e a justiça era longa, cara e problemática. Toca a fazê-la cada um por sua conta e risco”.

Se a dialéctica da violência, tanto integra o suicídio como a violência plebeia, o estatuto de intelectual, a começar pela sua auto-representação e valorização por parte dos seus pares, também não pode ser desligado de um contexto mais vasto relativo à situação do povo português, às suas elites e classes instruídas. Em inícios do século XX, Jaime Batalha Reis e Bazílio Teles reflectiram bem sobre o estatuto do intelectual em Portugal. O contexto, depois do denominado affaire Dreyfus, convidava a tais especulações. Mas é no modo concreto como os escritores são vistos e apreciados, em inúmeras celebrações e formas de lhes render culto, que se define o trabalho dos intelectuais desde, pelo menos as Comemorações Camonianas (1880).

A morte de Antero do Quental, por exemplo, de modo algum foi reduzida ao suicídio. Pelo contrário, as clivagens que alimentou ou, melhor, as apropriações de sentido tão diverso que a rememoração de Antero suscitou centraram-se na sua actuação e ideias em vida e quase esqueceram o acto com que pôs termo à vida. São disso exemplo O suposto escandinavismo de Antero de Quental (1897) de Adolfo Coelho, e a visão contrastada que deram de Antero, respectivamente, António Sérgio (No aniversário dum suicídioO Rebate, n.º 39, 11-9-1913) e António Sardinha (Ao princípio era o Verbo, 1924; Ao ritmo da ampulheta, 1925).

Enfim, a bonita capa e paginação deste livro não correspondem ao seu conteúdo. E é pena, porque pelo menos o seu título original era muito bom, Los mató la vida.

Sugerir correcção
Comentar