Quando a noite nos for mais próxima do que o mundo

Começa a ser um truísmo (ou já o é há demasiado tempo) dizer que é nas mais discretas editoras, ou sob as menos conspícuas chancelas, que se abrigam as propostas mais aliciantes da actual poesia portuguesa. Sirva de simples exemplo a Tea For One, responsável pela edição de Terreno, de Rui Miguel Ribeiro.

O título deste livro pode suscitar duas interpretações. Cada uma delas, porém, terá uma vizinhança estreita com a outra. Nome ou adjectivo, substância ou atributo. A epígrafe geral foi retirada de Field Work, de Seamus Heaney – aspecto que deverá ser considerado mais do que acidental, este de citar um poeta tão empenhado em cantar a terra –, e a primeira secção de Terreno chama-se Passagens. Motivo suficiente para tentar ler na palavra “terreno” uma firme qualidade nominal. O chão, o solo, portanto. Já Europa e mais 3 Poemas (Letra Livre, 2007), de resto, estendia “um chão de sedimentos”, e repetia a expressão “pisado chão” com uma insistência e deliberação que não deveriam passar em claro. E que se poderiam articular com a presença do elemento térreo neste mais recente livro de Rui Miguel Ribeiro – “chão firme que se inclinava/ perante os nossos pés” (p.30). Nele, não obstante, um poema como Vimieiro baralha os dados desse embrião de sentido. Uma citação de António Franco Alexandre – “este céu este chão” (p.22) – relembra-nos que a ambiguidade, quando bem gerida, é uma das valias da linguagem poética. Até que ponto a palavra “chão” é uma simples notação circunstancial, ou se opõe ao intangível de “céu”, eis alguma coisa mais que o poema deixa em aberto. E essa capacidade de autorizar alguma margem para o não dito, o impronunciável, não é das características menos marcantes desta poesia. Por outro lado, a inserção das palavras dos outros – provenham elas de um poema de Stephen Spender, ou de uma fragmentária informação meteorológica – ajudam a revelar a obliquidade lapidar desta poesia, que se mostra tão elegante ao trazer à colação um verso do poeta inglês como ao descrever o estado do tempo em Londres, “no dia 28 de Março de 2012”. Estas achegas não repisam a senda modernista de um Pound ou um Eliot, na sua parafernália anotadora; são antes testemunhas quase mudas de uma lealdade à feitura e à oficina do poema. Visam menos aclarar o que é obscuro do que ampliar o sentido do que já se mostra razoavelmente explícito. Por outro lado, ainda que longe de uma sugestão de matriz simbolista, esta poesia encaminha-se, ainda assim, segundo um compasso que se insinua, sem nunca vociferar.

A geografia oscilante destes poemas recorda-nos que, já em Um Outro Lugar (Oficina do Cego, 2011), Rui Miguel Ribeiro escrevera: “o coração nada soube/e caminhou”. Uma identificação, essa, entre o terrível músculo e a condição viajante, que inscreve esta poesia numa linhagem que podia recuar até ao “humor vagabundo” de Convite à Viagem de Baudelaire. Como ele, RMR podia dizer: “A nossa alma é um veleiro”. Mas na sua poesia, em vez de se tomarem por referência notações puramente geográficas, como Leste e Oeste, formulam-se trajectos traçados Do Lete a Oeste (p.31). Isto é, sem obliterar o padrão da longitude, ela incorpora mais duas dimensões: a mitológica e a humana. Aquele rio da mitologia é o do esquecimento. Medida de uma humanidade que se questiona nestes versos.

A importância conferida ao mundo natural é tanto uma herança do século XIX, nomeadamente do romantismo, quanto uma forma de dialogar com poesias bem menos distantes – entre as quais se poderia singularizar a de Joaquim Manuel Magalhães. “Gaipos, bagos, grumos, o que a língua tinta e os dedos, entre espinhos e enxertias, conjugam, conjuram?” (p.34): versos que dizem essa natureza plena de rugosidades, de dicções que quase se podem sentir, entre certa mastigação imaginada e uma leitura em projéctil pensado. Como noutro poema se percorrem “caminhos, árvores e vultos” (p.19). E não é apenas esse ritmo ternário, evocativo de um quase sortilégio, na poesia portuguesa – Segredos, Sebes, Aluviões –, o que deve ser tido em conta, mas a forma como esta poesia se detém diante do natural sem se embevecer, nem lhe voltar, frivolamente, costas citadinas e negligentes. Uma das reacções possíveis a versos como “as luzes de resposta/ que nos preparavam para cair à terra/ sem dela termos saído” (p.11) é a de constatar, não sem estranhamento, a hesitação pronominal. São as luzes que preparam o sujeito poético plural; não são elas que se preparam. No entanto, essa possibilidade não deixa de ficar em suspenso, como se aguardasse uma hipótese de se afirmar. E, por fim, a constatação de uma condição terrestre parece fazer retornar o estatuto de tudo ao barro do chão. Porém, os sentidos associáveis à terra vão-se ampliando, à medida que se lêem estes poemas. E podem mesmo prolongar-se até à última morada – "subúrbio de túmulos, que parecia suster/ em arrepio a própria terra" (p.12) –, a qual modaliza a superfície terrestre, até esta quase adquirir uma feição metafísica, ou permitir sombrias meditações sobre a terra enquanto pouso comum e face visível do destino humano – “a areia parece acabar numa cópula entre espuma/ e detritos, sombras e rochas, restos e homens,/ que rendem o fim do mundo” (p.29).

O segundo momento de Terreno chama-se De Dezembro a Fevereiro. O que, além de lembrar o título De Fevereiro a Fevereiro, de Gil de Carvalho – cuja poesia, com a sua natureza eminentemente viandante, não seria estranhável a esta forma de conceber as palavras em verso –, se relaciona com a inquietante forma de converter um calendário autobiográfico no labor de sóbria aplicação de XX Dias (Averno, 2009). E se importantes extensões deste livro são cobertas por poemas que recebem o nome e a referência dos lugares que elegem (Russell Square, Almourol, Villa Adriana), é possível reconhecer neste núcleo de Terreno uma inflexão em direcção ao tempo – “É a certeza de que, sem regresso,/ de tempo a tempo,/ são os versos que se acabam.” (p.24) Esta poesia mostra-se densamente consciente da inviabilidade de conceber o tempo como substância – “só/ as horas se repetem” (p.19). Nesse louvor e deslouvor, a gama desta escrita estende-se de uma reflexividade sabiamente contida – “para que morte o ano principiou” (p.20) – à observação tensa de ritmos e cambiantes – “a variante velatura/ das estações” (p.11) –, mas também à possibilidade de gáudio captada numa “luz de ano novo” (p.21). E, todavia, esse gáudio é filtrado por uma arte maturamente consciente, que nunca deixa baixar por completo as suas guardas. Na verdade, esta poesia conhece bem os limites do júbilo sem, todavia, deixar de o cantar o instante em que “a noite nos for mais próxima/ do que o mundo” (p.42). 

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