A dose, as farmácias e a desertificação

As farmácias sofreram uma dose de austeridade seis vezes superior à recomendada.

A dose foi uma das grandes descobertas da ciência farmacêutica em favor da humanidade. Com a prata, metal associado à saúde e à purificação, os romanos não cunharam só moedas, mas também colheres para administrar terapêuticas. No Museu da Farmácia, em Lisboa, podemos admirar outra arma revolucionária contra a doença: um conta-gotas do século I ou II, com origem na região do Sudoeste Asiático onde hoje encontramos a Síria. As civilizações antigas descobriram que a dose e a duração de um tratamento são critérios decisivos para alcançar a cura. E para evitarmos a fronteira de todos os perigos, a partir da qual um medicamento passa a ser mais nocivo do que benéfico. “A posologia correcta diferencia o remédio do veneno”, resumiu, no Renascimento, Paracelso, considerado o fundador da toxicologia.

O conceito de dose, nos últimos anos, foi referido algumas vezes na TV, principalmente pelos economistas que evitaram o discurso a preto e branco sobre a austeridade. Mas, se reparamos bem, o problema decisivo da dose, em regra, não faz parte do debate político. As medidas, ou as reformas, são “boas” ou “más” consoante a filiação ideológica e partidária dos comentadores. É raro ouvirmos um deputado da oposição dizer “essa medida até era boa, senhor ministro, mas foi longe de mais”.

Qualquer profissional de saúde sabe que, em momentos de urgência, como o da iminência de bancarrota, nem sempre se pode respeitar a posologia. Perante um doente aflito, os médicos e enfermeiros mais experientes sentem-se forçados a arriscar. Em muitos casos, esse risco é recompensado com a suprema alegria de mais uma vida salva. Passado o momento crítico e resgatado um doente que parecia condenado, em regra volta-se a respeitar a dose farmacológica indicada, que por alguma razão alcançou o consenso científico depois de anos de ensaios clínicos. Uma dose exagerada pode, em circunstâncias especiais, mostrar-se acertada. Mas torna a ser inaceitável perante a evidência de que está a ter efeitos tóxicos.

As farmácias sofreram uma dose de austeridade seis vezes superior à recomendada. No memorando da troika foi previsto um corte de 50 milhões de euros no sector, mas o corte real foi de 314 milhões. Profundas razões culturais podem explicar a aparente resignação dos farmacêuticos, que não fizeram greves nem manifestações. Por um lado, as farmácias são micro e pequenas empresas portuguesas. Para elas, a falência de Portugal seria pior do que qualquer terapia. Por outro, a maioria das farmácias continua a ser o negócio familiar de farmacêuticos, profissionais com pelo menos cinco anos de formação universitária e 40 anos de serviço inovador à sociedade portuguesa. Os farmacêuticos portugueses acreditam no futuro e confiam que a evidência tem sempre consequências.

Como alertou o Banco Mundial, num relatório de Outubro de 2013, a austeridade seis vezes superior à dose indicada pela troika introduziu em Portugal o risco, inédito, de “ruptura da rede de farmácias”. Nas contas da Universidade de Aveiro, 2414 das 2915 farmácias portuguesas deram prejuízo em 2012, o que corresponde a 83% da rede. As 415 farmácias mais pequenas têm, em média, 50 mil euros de prejuízo anual por manterem a porta aberta. Ora, muitas dessas farmácias são o serviço de saúde que resta às populações, rurais ou urbanas, mais isoladas e desfavorecidas. Na última década fecharam, em Portugal, 763 extensões de centros de saúde e 200 serviços de atendimento permanente ou de urgência básica. Desapareceram, também, 1330 postos dos correios e três em cada quatro escolas do primeiro ciclo, as antigas escolas primárias.

O sociólogo António Barreto sempre defendeu que o despovoamento e a concentração de serviços são fenómenos próprios do desenvolvimento económico, mas também alertou para o problema da dose. “Os ministérios perdem a cabeça, os directores-gerais perdem a cabeça e em vez de quatro escolas é dez, depois em vez de dez são 20, depois das 20 passa a 40, e depois não se repara, não se faz a diferença”, declarou, numa recente entrevista ao Diário de Notícias.

É evidente que Portugal, para dar a volta ao envelhecimento da população e à desertificação do território, tem de criar condições para que os portugueses possam constituir família, ter iniciativa empresarial e emprego. As farmácias são a maior — e melhor distribuída — rede de combate à desertificação. O facto de serem o serviço de saúde mais próximo da esmagadora maioria dos portugueses tem de ser aproveitado. Com urgência, porque nenhuma pequena empresa resiste a 50 mil euros de prejuízo por ano.

Presidente da Associação Nacional das Farmácias

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