Cientistas e artistas cruzam no Porto os seus olhares sobre o futuro

Um Nobel da química, quatro Pritzkers da arquitectura e fi guras de topo de várias disciplinas científicas e criativas, da sociologia à biónica e da literatura ao cinema, reúnem-se a partir deste domingo no Teatro Rivoli.

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O arquitecto francês Jean Nouvel faz amanhã no Rivoli a primeira conferência em Portugal JACQUES DEMARTHON/AFP

Uma conferência-performance do encenador e coreógrafo norte-americano Robert Wilson abre esta tarde, pelas 17h, no Teatro Municipal Rivoli, a edição inaugural do Fórum do Futuro, um festival de pensamento promovido pelo pelouro da Cultura da Câmara do Porto. Até ao próximo domingo, a cidade vai acolher um fórum que é ao mesmo tempo um think tank interdisciplinar e um festival performativo.

Os convidados serão apresentados por figuras da cidade que, em muitos casos, se tornarão previsivelmente (e desejavelmente) co-intervenientes das sessões, como se imagina que acontecerá, por exemplo, na segunda-feira, quando Eduardo Souto de Moura apresentar aquela que será a primeira conferência dada em Portugal pelo arquitecto francês Jean Nouvel.

O PÚBLICO pediu a alguns deles que antecipassem um pouco o que se poderá esperar das sessões em que participarão. João Teixeira Lopes comentou a obra pioneira do norte-americano Ray Hutchison no domínio da sociologia urbana, Nuno Grande apontou o que aproxima e afasta os arquitectos Álvaro Siza e Rafael Moneo, e em que é que Jean Nouvel se distingue de ambos, e Alexandre Quintanilha ajudou-nos a perceber em que direcções se orientam as investigações de Barbara Sahakian, uma reputada especialista em smart drugs, e Ian Harrison, um jovem cientista que trabalha em interfaces cérebro-máquina. Quintanilha comentou ainda as perspectivas que o trabalho do prémio Nobel da Química Aaron Ciechanover veio abrir a uma futura medicina personalizada.

Ray Hutchison, que virá falar do futuro das cidades (dia 24, no Rivoli), “é um dos grandes herdeiros actuais da escola de Chicago, pioneira no estudo de centros urbanos”, diz João Teixeira Lopes. E se a “racialização do espaço urbano” que este estudou nas grandes cidades americanas pode não ter tradução imediata na realidade europeia, Teixeira Lopes lembra que “as nossas cidades já tiveram guetos de judeus, ainda têm guetos de comunidades ciganas e continuam a ter guetos sociais”. Daí que, apesar de todas as diferenças de contexto, haja muito a aprender com o conceito proposto por Hutchison de uma “cidade segmentada”, um “espaço urbano fortemente descontinuado e guetizado”, no qual a diversidade e a multiculturalidade se arriscam a ser uma mera soma de parcelas incomunicantes.

Num momento em que  “as Chinatown do mundo se transformaram em lugares profundamente turísticos”, o risco, alerta Teixeira Lopes, está na “higienização” dos espaços públicos. O sociólogo lembra a nova prática, surgida em Londres, de se colocar espigões de ferro à entrada de prédios de luxo para evitar os sem-abrigo como sinistro exemplo dos desmandos a que esta tentação pode levar.

Construir no construído
Após uma primeira sessão dedicada à arquitectura no dia 24, com Souto de Moura e Nouvel, Álvaro Siza e o espanhol Rafael Moneo vão falar no dia 27 do papel da arquitectura na reconstrução da cidade. Nuno Grande, que conversará com ambos, nota que “já não há hoje nas cidades terrenos virgens”, que “a arquitectura constrói no construído”, e que Siza e Moneo, trabalhando ambos “essa ideia de continuidade histórica”, são também exemplos de como ela pode ser abordada de maneiras distintas

“Siza está muito interessado na relação entre edifício e contexto, de uma forma subtil, integradora”, ao passo que Moneo, diz, “está mais ligado a uma certa monumentalidade, que de alguma maneira corrige, reacerta o contexto”.

Ambos se distinguem do francês Jean Nouvel, um “herdeiro da tradição iluminista da grande obra”, alguém cujos projectos “são uma espécie de exemplos máximos de como se deve fazer um edifício”, diz Nuno Grande . A sua arquitectura “está menos vinculada ao traçado urbano, tem mais a ver com o objecto icónico”, mas não é “à custa da grandeza ou da dimensão” que as suas obras adquirem monumentalidade. “Os seus edifícios têm sempre a escala certa e estão implantados no lugar certo”.

Nuno Grande lembra a recente polémica provocada pelo autor do Museu Guggenheim de Bilbau – Frank  Gehry respondeu com um dedo espetado à acusação de que praticaria uma arquitectura-espectáculo – para sugerir que começa já a sentir-se “um cansaço do arquitecto-estrela”. Mas observa que “a arquitectura não quer ser natureza nem instalação artística”, e que o caminho a seguir não é o do maniqueísmo. O principal problema, diz, “é que muitas vezes os encomendadores políticos querem deixar marca e não reflectem se vale a pena construir de novo ou se é preferível adaptar o que já existe”.
 
Medicina personalizada
As ciências ditas “duras” entram em cena na sexta-feira com uma sessão em que se falará de neuropotenciação, e na qual Alexandre Quintanilha irá conversar com a neuro-psiquiatra Barba Sahakian e com Ian Harrison, um investigador que implantou chips no seu próprio corpo.

O coordenador do Instituto de Biologia Molecular e Celular divide em três grandes áreas a actual investigação neste domínio: a manipulação genética de células, que é hoje usada para curar várias doenças, mas que em teoria poderá chegar ao “desenho genético de seres humanos”, o campo das “smart drugs”, domínio em que Sahakian é uma referência mundial, e ainda a biónica, representada neste fórum por Ian Harrison, que “liga células do corpo a máquinas para aumentar, por exemplo, a capacidade da memória”.

Para ilustrar os horizontes que estas investigações abrem, Quintanilha recordou o caso recente de um bem-sucedido ensaio clínico em que uma mulher tetraplégica com um chip instalado no cérebro conseguiu controlar com o pensamento um braço mecânico, fazendo-o chegar-lhe uma garrafa com café. Mas se este é um exemplo claro de aplicação terapêutica, “nem sempre é fácil”, diz, “distinguir o que é terapia do que é potenciação”. E dá um exemplo: “colocar um chip no cérebro que nos ligue a computadores que armazenam a nossa memória, para a podermos ir buscar quando quisermos, já é potenciação”.  

Quintanilha regressa ao fórum no dia seguinte (29) para receber, juntamente com o médico e investigador Sobrinho Simões, o Nobel da Química Aaron Ciechanover, a quem se deve, explica, “a descoberta do mecanismo que as células usam para limpar o lixo que se vai produzindo dentro delas”.

Este bioquímico israelita “está agora interessado em desenvolver novos fármacos que possam ser destinados a indivíduos específicos”. A partir do momento em que “conhecemos a constituição genética de uma pessoa, podemos tentar desenhar moléculas apropriadas”, explica Quintanilha, que confessa estar ele próprio “muito curioso” em ouvir Ciechanover descrever "os mais recentes avanços da medicina personalizada”.

O programa do Fórum do Futuro - que, para além do Teatro Rivoli, vai decorrer também no Teatro Nacional São João, no Museu de Serralves e na Casa da Música - pode ser consultado neste endereço.

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